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A fome pelas coisas – algumas notas sobre Jorge Bodanzky e seus arquivos

08 de maio de 2024

Sincelos atulham a longa janela
Com vidro barbárico
A sombra do melro
A cruzou diversas vezes
A aura
Traçou na sombra
Uma causa indecifrável

Parece-me impossível renunciar a uma nota pessoal à guisa de abertura dessas considerações em torno do arquivo de Jorge Bodanzky. Faz aproximadamente um ano (2023) que fui contatado pela equipe de cinema do IMS com uma notícia assombrosa: a instituição havia adquirido os arquivos pessoais de Bodanzky que, além de um volumoso conjunto de fotografias still – a produção de Bodanzky é atravessada por uma espécie de anfibologia estrutural, na qual simultaneamente se articulam e se separam diretor e fotógrafo; o contexto cinematográfico, político e cultural brasileiro, com o horizonte de recepção do público alemão, uma vez que inúmeras instituições desse país foram responsáveis por encomendas e financiamento de projetos de Bodanzky ao longo de décadas –, também continha inúmeros materiais cinematográficos inéditos de caráter documental, em formatos e bitolas diversos, notadamente super-8 e vídeo analógico. Esse material – cuja descoberta e preservação ao longo de décadas são per se assombrosas[1] – havia sido digitalizado e passado por uma primeira catalogação pela equipe do IMS, que se preparava para realizar, no ano seguinte, uma grande exposição, que seria acompanhada de uma retrospectiva do trabalho cinematográfico de Bodanzky (e que também incluiria novas cópias de alguns dos seus filmes mais relevantes, comissionadas pelo IMS). A equipe de cinema do IMS buscava alguém que pudesse colaborar na construção de alguns sentidos possíveis para materiais simultaneamente tão vastos e variados, e que haviam recebido, até aquele momento, uma classificação mais intuitiva, baseada na divisão de rolos e fitas.

A tarefa de visionamento do arquivo se revelou de imediato hercúlea: em uma classificação grosseira, havia aproximadamente 407 minutos em rolos de super-8 digitalizados, que incluíam desde registros familiares os mais diversos – rascunhos preciosos para uma possível história da vida privada dos setores médios brasileiros ao longo da ditadura militar –; bastidores de reportagens para a televisão alemã; materiais de pesquisa para projetos – tanto acabados quanto nunca realizados –; inúmeras viagens, no Brasil e para fora dele; experimentações visuais com o suporte, formas de exercício da liberdade criativa no âmbito privado diante da atmosfera repressiva que o circundava. Nos meandros do material, apareciam, cristalinas, imbricações entre o pessoal, o político e o cinematográfico: a viagem familiar que se metamorfoseia em registro etnográfico, o material de pesquisa para o projeto novo que faz eclodir algumas das obsessões temáticas e visuais de Bodanzky – Brasília, a Amazônia. O material capturado originalmente em vídeo era ainda mais abundante e diverso, composto por aproximadamente 4.400 minutos, em múltiplos suportes – Umatic, VHS, Hi-8, em uma verdadeira arqueologia das formas videográficas –, a confirmar um ímpeto arquivístico explicitado por Bodanzky em entrevista: a necessidade de construir uma instância de controle e registro de projetos feitos muito frequentemente por encomenda, aos quais Bodankzy não raro perdia o acesso posteriormente. Conjuntamente, registros em super-8 e vídeo revelavam não apenas os bastidores de uma trajetória criativa, mas também uma dialética entre o impulso da expressão pessoal e as necessidades do fomento e da construção de formas de comunicabilidade com públicos possíveis. Nesse sentido, a pletora de materiais videográficos é muito fortemente marcada tanto pelas relações de Bodanzky com a televisão quanto com as tentativas de construir pedagogias possíveis nos mass media. As digitalizações incluíam ainda algumas das reportagens realizadas por Bodanzky para a televisão alemã nos anos 1970, capturadas originalmente em 16 mm, preciosos registros do autoritarismo latino-americano e das formas de resistência popular em meio à dureza das ditaduras e dos golpes de estado (aproximadamente 93 minutos).

Cena de Caminhos de Valderez, de Jorge Bodanzky e Hermano Penna

Em comum acordo com a equipe do IMS, decidimos pela realização de quatro cortes, em metragem curta/média, organizando uma pequena parte dos arquivos de Bodanzky, a partir de uma classificação temática: os registros pessoais/familiares; as viagens; o trabalho como repórter cinematográfico/videográfico; as experimentações visuais a partir do suporte fílmico[2]. Seriam cortes em grande medida transversais, tangenciando algumas de suas principais preocupações criativas e, em grande medida, passando ao largo de sua obra cinematográfica édita. Essa decisão orientou também a preparação, por mim, do roteiro de uma entrevista com Bodanzky, por integrantes da equipe de cinema do IMS, e cujos áudios foram editados e empregados como off nos cortes.

Esse exercício inicial de roteirização serviu de base para o trabalho dos dois montadores, Luiz Pretti e Ricardo Pretti. Ambos, antigos integrantes do coletivo Alumbramento, possuem não apenas uma vasta experiência como montadores mas também têm um especial interesse em materiais audiovisuais na fronteira do registro pessoal. Decidimos que eu me concentraria na separação e classificação dos materiais – tanto audiovisuais quanto da entrevista –, conforme os núcleos temáticos acordados, e na preparação das cartelas – elaboradas a partir de entrevistas de Bodanzky e, em especial, da entrevista editada por Carlos Alberto Mattos para a coleção Aplauso[3]. Decidimos ainda que os cortes tentariam reconstruir alguma cronologia possível – decisão que fracassou fragorosamente. O resultado final como que espelha uma visão em conjunto – minha, de Luiz e de Ricardo –, expressando uma série de curto-circuitos: entre presente e passado; entre o registro direto da experiência vivida e sua elaboração a posteriori; entre o vídeo e a película; entre o material bruto e as decisões de corte; entre o pessoal e o político; entre o sonoro e o silencioso, em uma genealogia possível de algumas das múltiplas sendas que constituíram uma das principais trajetórias fotográficas e cinematográficas no Brasil e no mundo ao longo dos últimos 50 anos.

 

A mostra As Câmeras de Bodanzky está em cartaz no IMS Paulista.


[1] Tanto este texto quanto meu trabalho com os arquivos de Bodanzky devem muito ao artigo de Patrícia Mourão “Do arquivo ao filme: sobre Já visto, jamais visto”, publicado em Devires, v. 9, n. 2, 2012.

[2] O trabalho com o arquivo resultou em cinco cortes, do qual quatro serão exibidos como parte da retrospectiva As câmeras de Bodanzky, a dizer: dois cortes com o núcleo temático das viagens, um corte em torno das atividades como repórter fotográfica/videográfico, e um corte com as experimentações visuais.

[3] MATTOS, Carlos Alberto. Jorge Bodanzky – O homem com a câmera. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.