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Japão em transe

31 de março de 2022

Depois do oscarizado Drive My Car, chega aos cinemas brasileiros outro ótimo filme japonês, A mulher de um espião, de Kiyoshi Kurosawa, que pode ser descrito como um thriller de espionagem misturado com drama amoroso, embora a definição não dê conta de todo o seu alcance.

Ambientado em 1940 na cidade portuária de Kobe, o filme ganhou o prêmio de direção em Veneza e tem como um de seus roteiristas o diretor de Drive My Car, Ryûsuke Hamaguchi.

Salvo engano, é o primeiro filme de época de Kiyoshi Kurosawa, cineasta admirado pela versatilidade e originalidade com que trafega por gêneros como o terror, o suspense e a ficção científica. Aqui, estamos no início da Segunda Guerra Mundial, em que o Japão se alinhou militarmente às outras “potências do Eixo”, Alemanha e Itália.

Yusaku Fukuhara (Issey Takahashi), jovem comerciante do ramo de importação e exportação, tem contato com empresários de países “inimigos” vigiados pela polícia nipônica como possíveis espiões. O filme começa justamente com a prisão de um desses estrangeiros, um comerciante britânico de seda. Depois de uma viagem à Manchúria, da qual voltou acompanhado de uma jovem misteriosa, o próprio Yusaku passa a ser vigiado.

 

Conflito de lealdades

A situação se complica pelo fato de o novo chefe militar local ser Yasuharu Tsumori (Masahiro Higashide), amigo de Yusaku e, ao que tudo indica, amor de adolescência de sua esposa, Satoko (Yû Aoi).

É nesse terreno minado que se desenvolve a trama de A mulher de um espião, mantendo sempre em equilíbrio tenso as relações afetivas, o contexto político-militar e os dilemas morais. São estes últimos, no final de contas, que importam: o que vale mais, a fidelidade a uma pessoa ou a um país? A lealdade a um país ou à humanidade como um todo? Em quem se pode confiar nesse cenário movediço?

Essas questões atravessam a narrativa clássica de Kurosawa, sóbria até nas cores tendentes para o marrom e o cinza chumbo, expressão de tempos duros. E pelas bordas, com sutileza, entra o grande e complexo tema da ocidentalização do Japão, que o nacionalismo fascista tentou barrar à força, e em vão, na época da guerra.

No desenrolar dessa história tem papel de destaque o próprio cinema, com sua dupla capacidade de revelar (nas imagens de experimentos horripilantes com armas biológicas na Manchúria) e de manipular (nos cinejornais oficiais do regime japonês). Um filme a ser visto com atenção.

 

Documentários

Começa nesta quinta-feira, 31 de março, a 27ª edição do festival de documentários É Tudo Verdade, que este ano volta a ter exibições em cinemas de São Paulo e do Rio, além de uma vasta programação pela internet.

Entre os 77 longas e curtas programados, oriundos de 34 países, encontram-se os mais variados assuntos, nos mais diversos estilos e linguagens, de registros de guerras e genocídios aos mergulhos na psique individual, das reflexões sobre o próprio cinema a cinebiografias de personalidades como o compositor Belchior, a cantora Cesária Évora e o escritor Kurt Vonnegut. Retrospectivas especiais revisitam os documentários de Ana Carolina e Ugo Giorgetti.

A seguir, alguns destaques da programação:

A história do olhar (Reino Unido), de Mark Cousins. Na véspera de fazer uma operação de catarata para salvar a visão de um olho, o diretor reflete sobre a formação do olhar, recorrendo à pintura, à fotografia e ao cinema.

A história do cinema: uma nova geração (Reino Unido), de Mark Cousins. Em quase três horas, o diretor irlandês faz um amplo painel do cinema mundial no século 21, dividido em blocos temáticos como “o corpo”, “a família”, “os deslocamentos”, etc.

Adeus, Capitão (Brasil), de Vincent Carelli e Tita. A relação intermitente de Carelli com o líder indígena Krôhôkrenhum ao longo de décadas documenta a saga do povo Gavião, no Pará, marcada por epidemias, assassinatos, remoções forçadas e exploração laboral pelo Serviço de Proteção ao Índio, antecessor da Funai.

Navalny (EUA), de Daniel Roher. A trajetória do principal líder oposicionista russo, Alexei Navalny, em especial a tentativa de assassinato por envenenamento que sofreu e o estardalhaço que ele conseguiu criar, provando na internet a cumplicidade (para dizer o mínimo) do governo Putin. Navalny talvez seja o líder político mais midiático do mundo, e isso favorece o documentário, ao mesmo tempo que obscurece sua linha política.

O território (Brasil/Dinamarca/EUA), de Alex Pritz. A luta de um jovem líder do povo Uru Eu Aw Aw e de uma ativista dos direitos indígenas em defesa do território demarcado da tribo em Rondônia, ameaçado permanentemente por agricultores e madeireiros.

O filme da sacada (Polônia), de Pawel Lozinski. O cineasta instala sua câmera na sacada de seu apartamento, num bairro residencial de Varsóvia, e passa a entrevistar transeuntes. Esse misto de divã e confessionário acaba por formar um quadro vivo do cotidiano da cidade e das transformações do país e do mundo.

Quem tem medo? (Brasil), de Ricardo Alves Jr., Dellani Lima e Henrique Zanoni. Por meio de alguns espetáculos, exposições e performances canceladas ou atacadas por extremistas, retrata-se o contexto de intolerância, fanatismo e falso moralismo dos últimos anos no país.

Um jóquei cearense na Coreia (Brasil), de Guto Parente. A incrível trajetória de Antonio Davielson da Silva, do interior do Ceará à fama na Coreia, onde em menos de dois anos, sem falar uma palavra de coreano e muito poucas de inglês, tornou-se o jóquei mais popular do país. O filme documenta suas conquistas e o dia a dia de sua família em Seul.