Por ocasião da estreia de Benzinho, de Gustavo Pizzi, no dia 23 de agosto, o Cinema do IMS promove uma programação especial em torno da atriz e roteirista Karine Teles. Serão exibidos os dois longas de Gustavo, Riscado (2010) e Benzinho (2018), nos quais Karine foi protagonista e corroteirista. A programação inclui também Que horas ela volta? (2015), dirigido por Anna Muylaert.
Em dois dos filmes que estamos apresentando neste mês, você é ao mesmo tempo protagonista e corroteirista. E uma das questões que nos levou a fazer essa pequena seleção de trabalhos seus é justamente a dimensão criativa da atuação, pensar a atriz enquanto roteirista mesmo nos casos em que ela não está implicada na escrita propriamente dita do roteiro – o que, de certo modo, é o que acontece com a Bianca em Riscado. De que forma o seu trabalho como atriz intervém criativamente em filmes diferentes, e de que maneira diretores diferentes trabalham isso?
Eu sou atriz porque descobri que essa era uma forma bastante eficiente de me comunicar, de fazer perguntas e sugerir discussões. A arte, para mim, tem a potência de comunicar para além da linguagem racional. Coisas que sentimos vendo um filme, lendo um livro, escutando uma música muitas vezes são quase palpáveis de tão concretas, mas não cabem na lógica racional. Eu sempre escrevi, mas durante muito tempo era apenas uma válvula de escape íntima. Meus textos e ideias eram só um jeito de colocar para fora coisas que não sairiam de outra maneira. Estar em cena para mim é bastante parecido, seja num palco ou na frente de uma câmera eu estou me abrindo para o espectador. Eu estou colocando dúvidas, questionamentos, sentimentos, desejos e afins para fora, na intenção de trocar com quem assiste. No cinema especificamente – uma arte em que o ator é mais um dos elementos, e não o centro, como costuma ser no teatro – não dá muito para fingir, para não estar presente, vivo e inteiro em cena quando se está diante de uma câmera. Brinco que ela vê nossa alma, enxerga o que estamos pensando, vê para além do que estamos mostrando. Por isso adoro trabalhar com diretores que gostam de trabalhar com atores. Quando essa colaboração na criação dos personagens acontece de forma eficiente, as chances de o trabalho render mais me parecem ser bem maiores. Esse trabalho de colaboração às vezes pode ser apenas uma conversa, uma lista de referências, um café. Às vezes esse trabalho passa pela sala de ensaio – coisa que eu sempre adorei porque acho importante demais poder errar, e ensaio é lugar de erro. As vezes passa por uma longa preparação. De toda forma, acho que a escolha de determinado ator para determinado personagem já é em si um convite à coautoria. Somos corpos e vozes que podem, claro, se transformar, mas que aliados ao que está escrito num roteiro criam imagens específicas e geram sentimentos específicos em quem assiste. Um ator X fazendo o personagem Y cria um resultado, o ator Z fazendo o personagem Y cria outro. A escolha do ator já é linguagem. Eu adoro ser dirigida e descobrir em mim o que serve para cada momento de cada história. Quanto mais eu vivo e experimento, mais vocabulário emocional e empático eu tenho para trabalhar, e esse eu acredito ser o exercício do ator: a empatia. No entanto, quando eu percebi que era possível escrever as minhas “vertentes” em formato de roteiro, abriu-se um novo buraco em mim, um novo espaço para receber e transformar coisas que eu queria entender, discutir, mostrar... Transformar em som e imagem em movimento, e que eu poderia ser a atriz que daria vida a parte disso. Para mim, fazer uma personagem que escrevi – como em Riscado ou Benzinho – não é tão diferente de fazer uma personagem extremamente complexa e bem escrita por outra pessoa, como em Que horas ela volta?. De algum jeito, a descoberta das questões, a procura por referências e a construção da personagem passam pelo mesmo caminho dentro de mim no que se refere ao meu trabalho como atriz, porque a personagem só existe mesmo enquanto está em frente à câmera, em relação a outro personagem ou ao espaço – que no cinema, para mim, também é personagem. E isso só acontece quando o trabalho de todo mundo que pensou aquilo tudo converge para a cena. Eu posso ter escrito a personagem e a cena, mas o cinema só começa de fato a existir quando estamos no set, filmando, depois que um batalhão de profissionais pensou cada elemento que está compondo aquele quadro, aquele take, aquele plano. Eu sou só mais um.
Em Riscado, você faz uma atriz que interpreta uma atriz, mas que, de um ponto de vista de classe, está submetida a patrões e patroas muito violentos. A Irene, sua personagem em Benzinho, tem uma história pregressa que também sugere esse tipo de violência. Já em Que horas ela volta? você está do outro lado dessa lógica de opressão: Bárbara é a patroa. Poderia falar um pouco das construções dessas relações no roteiro e na sua atuação?
Bianca e Irene são duas mulheres que foram escritas por mim, Bárbara não. Daí você pode tirar algumas conclusões sobre minhas origens e minhas questões com o mundo em que vivemos. Eu sou filha de professora e psicólogo – ambos os primeiros na história de suas famílias a cursar universidade –, e eu e meus irmãos estudamos em escolas particulares porque tínhamos bolsa. Anos de inadequação, bullying e uma educação tradicional e religiosa que ainda precisam ser esfregados diariamente para remover persistentes nódoas na minha coragem, autoestima e liberdade. Eu comecei a trabalhar aos 14 anos (dava aulas de inglês em um curso) e trabalhei em diversas atividades durante todo o período em que cursei uma universidade federal, e custeei minha educação dessa forma. Eu também comecei a fazer teatro aos 14 anos, e de lá para cá não parei mais, mas foi só muito tempo de carreira depois que eu tive coragem de me assumir atriz e decidi não trabalhar em mais nada que não estivesse relacionado à profissão na qual eu havia me formado e dedicado tanto tempo e amor. Pedi demissão do meu trabalho de assistente pessoal (função que ocupava havia três anos) e fui “tentar a vida”. Daí veio Riscado e as coisas começaram a acontecer. Esse ano eu completo 25 anos de carreira, mas só vivo do meu trabalho de atriz há uns sete ou oito, e, mesmo assim, ainda não me considero estabilizada. Sinto que o caminho está sendo trilhado, mas sei que o trajeto que eu escolhi tem suas peculiaridades. Acho que isso tudo está presente nas coisas que eu escrevo. Eu conheço mais de perto o lado do oprimido, das minorias, dos invisíveis. A Bianca de algum jeito sou eu e muitos amigos e conhecidos que vivem as incertezas e os mistérios dessa profissão. A Irene e a Sônia (as duas mulheres de Benzinho) são as milhões de mulheres comuns que têm sua força extraordinária menosprezada pela sociedade. Sou eu, que tenho dois filhos e trabalho feito louca para cuidar deles e boto para dormir cantando musiquinha; minha mãe, que tinha três empregos e cuidava praticamente sozinha de três filhos; a mãe do Gustavo (diretor e corroteirista do filme), que só conseguiu estudar depois de adulta porque precisou começar a trabalhar ainda criança; a minha avó, que era operária numa fábrica de tecidos, cozinhava para fora e cuidava de quatro filhas; minha irmã, que trabalha feito louca, mas sempre tem alegria e amor para educar e brincar com seus filhos; a mulher que passa por você na rua cheia de sacolas com ar de cansada e que você nem vê. Na Bárbara, de Que horas ela volta?, eu encontrei um desafio enorme porque não tinha em mim e na minha vida mais próxima ninguém como ela para usar de referência, então trabalhei pelo lado avesso. Lembrei de cada vez que fui menosprezada, maltratada por um ou outro empregador, quando surpreendia as pessoas com as minhas opiniões inesperadas para uma menina como eu, quando incomodei, quando fui humilhada e procurei encontrar a lógica de quem faz isso com o outro, as razões e a formação de quem se acredita superior. A Anna (Muylaert, diretora do filme) falou muito sobre a Bárbara ser uma mulher que está também cumprindo as regras de uma classe social e, dessa forma, tentando fazer o que se espera dela. Foi um exercício difícil de empatia para mim, e em muitos momentos eu achei que seria incapaz de fazer uma cena ou outra sem julgar a personagem na minha interpretação. A gente sabia que quem estava assistindo ao filme precisava se ver em algum daqueles personagens e se questionar. Depois que o filme foi lançado, eu fui surpreendida algumas vezes por pessoas que vieram me parabenizar e dizer que concordavam com a Bárbara – os elogios mais tortos que eu já recebi na vida.
Em Benzinho, Irene está cercada de personagens masculinos: ela tem quatro filhos homens; o mais velho, que vai partir, sabe ajudar no trato com os mais novos; seu marido sonha com um futuro melhor, mas nem sempre dá conta de arcar com os sonhos que elabora; e seu cunhado é violento com a esposa. É possível falar na construção da subjetividade dessa personagem a partir das relações a sua volta?
Irene e Sônia estão cercadas de homens por todos os lados, porque nós, mulheres, estamos cercadas de homens por todos os lados. Aos poucos essa dinâmica está mudando e em algumas “bolhas” já é possível ver uma diferença enorme. Homens participando ativamente das atividades até então restritas às mulheres na maioria das famílias. Sendo pais de fato (estando presentes na educação e no convívio com os filhos) e sendo responsáveis também pelos cuidados com a casa onde moram. Coisas tão óbvias, mas tão improváveis na dinâmica da maioria das famílias do mundo. As subjetividades da Irene e da Sônia, a meu ver, foram construídas muito mais a partir dos seus desejos e anseios do que das suas relações com os homens. Uma ajuda a outra a dar conta do dia a dia para que ambas possam alcançar seus objetivos. O desejo maior de Irene é se formar e conseguir um emprego formal, e ganhar dinheiro com seu próprio trabalho. Irene está inserida ainda em um contexto machista; embora viva numa família amorosa, ela ainda é a única responsável pelos filhos e pela casa, mas junto com o amadurecimento dos filhos ela também está amadurecendo e buscando caminhos para mudar a dinâmica familiar vigente. Isso não é nem um pouco fácil, nem as condições que se apresentam em sua vida neste momento são favoráveis, mas ela segue... no caminho... ela vai.
- Lígia Gabarra e Thiago Gallego integram a equipe de cinema do IMS