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A saúde dos doentes

09 de maio de 2019

As estreias mais estimulantes da semana são dois filmes dirigidos por mulheres: uma veterana cineasta franco-belga, uma jovem cineasta brasileira. Varda por Agnès, de Agnès Varda, é um documentário com laivos de ficção; Mormaço, de Marina Meliande, é uma ficção com caroços espessos de documentário.

 

 

Comecemos por Mormaço. Ambientado no Rio de Janeiro na época das grandes transformações sofridas (este é o verbo) pela cidade às vésperas da Olimpíada de 2016, tem como protagonista uma jovem defensora pública, Ana (Marina Provenzzano), que tenta evitar o despejo de moradores de um bairro, a Vila Autódromo. A própria Ana mora num prédio no centro do Rio que está sendo progressivamente desocupado para a construção de um hotel de luxo.

 

Personagem e ambiente

         Resumido assim, pelas linhas gerais de seu argumento, o filme se conecta logo de cara a duas obras recentes do nosso cinema: Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, e Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé. De certo modo, seria uma combinação dos dois, com o eixo central que os une: o conflito entre o interesse voraz do capital e o direito dos indivíduos a permanecer onde vivem.

         Mas o que em Aquarius era uma possibilidade sugerida – a simbiose entre a personagem e seu ambiente, entre o corpo da moradora e o corpo do prédio que habitava – torna-se em Mormaço metáfora explícita: Ana adoece junto com o ambiente que a cerca, e o filme mergulha corajosamente no fantástico.

         Para além do “assunto” e do enredo, o que há de mais belo e interessante na abordagem de Marina Meliande é sua imersão no mundo físico, sua ênfase no concreto, sensorial. O filme começa com a imagem de um paredão de pedra em que o musgo e o bolor desenham estranhos mapas. Essa imagem, seguida por uma densa nuvem de poeira que engolfa a cidade e a protagonista, anuncia a atenção especial que será dada aos elementos da natureza (água, terra, ar, fogo), aqui e ali violentados pela ação do homem.

         Numa cena aparentemente descolada da trama central, Ana recosta-se numa árvore num parque e come esganadamente a fruta desconhecida que cai a seu lado. Esse enganoso desvio narrativo tem a ver, por um lado, com a recorrente preocupação alimentar da protagonista, e por outro, com a interpretação que ela faz de seu próprio processo de transformação orgânica. Seja como for, reforça a ideia de que há uma comunicação oculta e enigmática entre o indivíduo e a natureza, como se esta quisesse expressar àquele seu desespero, seu pedido de socorro, só conseguindo fazê-lo, enfim, sob a forma da doença.

 

Movimento pendular

         Da perspectiva de uma leitura sócio-política mais imediata, Mormaço remete a uma situação dramática muito comum em nosso cinema moderno, que é a do personagem de classe média, ilustrado, que oscila entre a classe dominante e os oprimidos, optando por um lado ou por outro.

Esse personagem pendular, cuja recorrência no Cinema Novo foi estudada por Jean-Claude Bernardet no livro Brasil em tempo de cinema, se divide em dois em Mormaço: a advogada Ana defende do despejo os moradores da Vila Autódromo; o arquiteto Pedro (Pedro Gracindo) trabalha para a construtora que desaloja pessoas. No cinema brasileiro recente, esse lugar social intermediário é ocupado, por exemplo, pela psicanalista luso-brasileira que dá suporte a mulheres vítimas de violência de uma área pobre do Rio.

Um dos pontos fortes de Mormaço é o impressionante registro documental de episódios de destruição e transformação urbana – e a incorporação orgânica disso na narrativa ficcional. Não é apenas o documento, mas a valorização estética e emocional de seu impacto. O ponto fraco talvez seja uma certa irregularidade na dramaturgia, em especial a disparidade de atuações, com alguns protagonistas muito bons (Marina Provenzzano, Analu Prestes) e outros (possivelmente não profissionais) patinando numa impostação travada de discurso militante. Um problema que, a meu ver, Eliane Caffé equacionou de modo mais satisfatório em Era o Hotel Cambridge.

Nada disso tira o brilho e o interesse de Mormaço, reação estética corajosa e urgente aos tempos de destruição que estamos presenciando.

 

A aula magna de Varda

         Quem quiser conhecer o cinema de Agnès Varda (1928-2019), uma das diretoras centrais do cinema moderno, fará bem se começar pelo fim, isto é, pelo extraordinário filme-testamento Varda por Agnès, que teve sua première no último festival de Berlim, em fevereiro, um mês antes da sua morte. [o trailer:

Tendo como fio condutor algumas palestras da cineasta para públicos diversos, o documentário passa em revista toda a sua cinematografia em tom de conversa descontraída, repleta de humor e autoironia, ilustrada por trechos de filmes marcantes e cenas de bastidores.

         O que vemos então é o funcionamento interno de um cinema ao mesmo tempo radicalmente pessoal e extremamente poroso aos seres, objetos e ambientes à sua volta. Do pioneiro La Pointe-Courte (1955), realizado quando Agnès não tinha experiência alguma em cinema e considerado precursor da Nouvelle Vague, ao magnífico Visages villages (2017), passando por títulos seminais como Cléo das 5 às 7 (1962), Os renegados (1985), Jacquot de Nantes (1991) e Os catadores e eu (2000), realizamos uma viagem por um cinema sempre inquieto, que mescla ficção, documento e memória de maneira única e encantadora.

         “Nada do que é humano me é estranho”, a célebre frase de Terêncio, poderia servir de lema para o cinema de Agnès Varda. Diz ela, logo no início de seu último filme, que seu processo consiste em três coisas: inspiração, criação e compartilhamento. A ideia, a forma, a comunicação com o público.

 

Acaso e forma

O bonito é descobrir com ela como essas três coisas vêm juntas. Cada um de seus filmes está aberto aos acidentes de percurso, às descobertas de momento, à influência de seus participantes atrás e à frente da câmera. Mas essa permeabilidade ao entorno não significa um vale-tudo, um registro aleatório de qualquer coisa que aconteça no campo de visão da diretora. Há uma permanente busca da forma, a criação de dispositivos expressivos próprios para cada situação, guiada por um espírito ao mesmo tempo lúdico e crítico.

Um exemplo singelo e didático é o uso das cores em As duas faces da felicidade (1965), em que os fade-outs ao final de cada sequência se dissolvem não no preto, mas na cor predominante (e dramaticamente significativa) daquele segmento. Ou então os travellings laterais que pontuam a narrativa de Os renegados, acompanhando a protagonista sempre da direita para a esquerda, “ao avesso do nosso movimento de leitura habitual”, sublinhando a postura “do contra” da personagem.

Nada como ouvir a própria artista falar dessa obra em que o uso da primeira pessoa não implica narcisismo, mas, pelo contrário, um gesto de amor ao outro, aos outros, a todos nós.