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Amor pelas torrentes e liames

09 de dezembro de 2019

Em dezembro de 2019, O auge do humano (2016), de Eduardo Williams, será exibido como parte da Sessão Cinética nos cinemas do IMS em São Paulo e no Rio de Janeiro. No IMS Paulista, haverá debate com os críticos da revista Cinética após a sessão do dia 12/12, e o filme volta a ser exibido no dia 15/12. 
 
 
Nascido em 1987, Eduardo Williams é um dos jovens diretores atuais cuja obra possui uma inegável consistência construída por meio de um constante risco. Esse seu primeiro passo em longa duração guarda muitas semelhanças com seus cinco curtas-metragens anteriores, que estabeleceram a justa fama do artista argentino em vários dos principais festivais do mundo. O auge do humano é mais um capítulo de sua exploração das múltiplas dimensões do que é ser jovem no mundo de hoje. Aqui, como nos filmes anteriores, o que se busca é, acima de tudo, um sentimento, uma sensação, em que o “deslocamento” é o motivo central – “motivo” como causa e também no sentido musical e composicional.

Em seu primeiro longa, Williams compõe mais uma experiência de continuum por meio de longos planos em lentes abertas, ao mesmo tempo hiper-realistas e oníricos, em que o sentido é mais o da experiência do que o da informação. Quase nunca sabemos os nomes das personagens – se é que podemos chamá-las disso. Assim também com os lugares: aqui, sua composição em fluxo atravessa três territórios em países e línguas diferentes: Argentina, Moçambique e Filipinas. Sempre acompanhando jovens, vivemos esses espaços em trânsito, como que celebrando ou mesmo “curtindo” cada pequeno elemento que muda ou modula: passar por uma porta, mudar do exterior para o interior, da alta para a baixa luz, e assim por diante. A obra de Williams e sua radicalidade do presente é a de um amor desinteressado e insistente ao transitório.
 

Cena de "O auge do humano", de Eduardo Williams
Cena de O auge do humano, de Eduardo Williams

 
Esse cinema é um dos primeiros a se dedicar a uma espécie de mudança cognitiva que a geração nascida próxima à mudança de milênio vive. Nos filmes de Williams, experimentamos uma forma de sentir desgarrada, ao mesmo tempo dispersa e atenta, multifocal e acentrada. Muitas das cenas não tem um elemento central, assim como suas composições visuais são quase sempre desequilibradas no sentido da simetria, tendo sempre um toque de artesania nos seus desenquadres. Mas a questão é justamente essa: o que parece estar em curso é a poética de um mundo sem centro, cujo vínculo se constitui justamente pela experiência do movimento. Mais moção do que exatamente emoção. E ter o movimento como perspectiva é abraçar uma forma distraída, porém tenaz, em que as conexões se dão de forma lateral: a inundação que rima com a caminhada na praia, o link transcontinental pela transmissão pornô e, sempre, as telas brilhantes dos celulares e computadores – que, não por acaso, sempre estão com problemas de funcionamento.

Williams é um dos primeiros grandes poetas desse estado perceptivo pensando em sua positividade. Seu lema é algo como: “Distraídos, moveremos”. Entretanto, essa sua sensação de distração, na medida em que o filme espacialmente não se detém, desenha uma forma de perceber que desobedece hierarquias. Porque quando não há foco, não há dominância, as escalas se confundem, e tudo pode ser o principal. É uma espécie de festa óptica o que se oferece, cheia de pequenos jogos, como a constante diferença entre a proximidade visual e auditiva (ouvimos de perto um personagem quando ele no quadro está espacialmente afastado no quadro).
 

Cena de O auge do humano, de Eduardo Williams

 
Esse cinema dos tempos dos gadgets, da sociedade em contínuo, do 24/7, oferece também seu antídoto. Porque, no capitalismo atual, a moeda, a matéria de desigualdade, é a informação. Ao Google, não importa tanto quem sou, mas meus padrões de compras, palavras-chave, trajetos recorrentes. Assim, o segredo e a opacidade se tornam armas políticas. O manejo sobre o não saber, o trabalho do indecodificável, é o que faz a máquina desacelerar, e aqui parece ser o fundamento de uma ética. Perambular, mas nunca devassar, estar junto, mas cultivar o que é secreto, sem com isso afrouxar os vínculos. Justo contrário: em O auge do humano, se trata de como construir liames onde não podíamos suspeitar. É somente esse o desafio que esse cinema se coloca. Ao individualismo liberal contemporâneo, o filme responde com um antiantropocentrismo radical. A ironia do título é só aparente: o “auge” do humano é quando essa categoria afinal se desfaz no mundo, nas coisas, se indiferencia, quando explora sua dimensão radicalmente comum, material, quando vira xixi ou formigueiro, para usar as matérias de transição usadas pelo filme.

Mesmo na sua marcante cena final, em que vemos a fábrica dos equipamentos eletrônicos que unem todas as pessoas do filme, e para a qual a câmera se estabiliza pela primeira vez após uma hora e meia, o filme encontra uma imagem para “viajar”, para “brisar” mesmo: um painel cujo reflexo mostra uma forma indefinida e que reflete uma luz intermitente. Pronto, a festa perceptiva do que é vivente está também ali, deslocada de seu sentido original. Ao invés de uma condenação moral, uma torção sensorial. Esse golpe de vista é exemplar de um cinema não afeito a definições e que quer para si uma política dos vendavais, afeita a criar acolhedoras “desumanidades” em forma de ambientes transitórios. Que siga.
 
 
Sessões de O auge do humano (2016), de Eduardo Williams, nos cinemas do IMS