É tentador tornar esta mostra uma celebração dos cem anos do chamado “Ciclo do Recife”, como a produção pernambucana da segunda metade dos anos 1920 passou a ser denominada pela historiografia do cinema brasileiro, que circunscreve em termos de “ciclos regionais” outros focos de produção que ocorreram fora do eixo das capitais do Rio de Janeiro e São Paulo ao longo dos anos 1910 e 1920, a exemplo de Cataguases e Campinas.
A obra de maior fôlego escrita por Jota Soares, ativo na produção pernambucana dos anos 1920 e principal memorialista do período, uma série de 59 colunas publicadas no Diário de Pernambuco entre 1962 e 1964, aponta já no título o ano de 1923 como marco inicial: “Relembrando o cinema pernambucano – 1923–1931 (Dos arquivos de Jota Soares)”. Como o autor esclarece, a série volta-se para a “fase do pioneirismo relacionado aos filmes de enredo”.[1] Por isso a data inicial de 1923, quando segundo ele começaram as filmagens de Retribuição (Gentil Roiz, 1925), estreia da produtora Aurora-Film, considerado também o primeiro filme de ficção pernambucano. A data final, 1931, seria o ano de lançamento de No cenário da vida (Luís Maranhão e Jota Soares, 1930), que na verdade ocorreu em 1930, como registram os jornais e outros documentos da época. A extensa e valiosa série publicada por Jota Soares concentra-se, portanto, na produção de filmes de ficção e, em particular, nas atividades do grupo inicialmente ligado à Aurora-Film, do qual ele participou a partir de 1924, quando chegou ao Recife.
As datas, contudo, determinadas mais pelas memórias pessoais do que por documentos da época, flutuam conforme as fontes, inclusive entre textos do próprio Jota Soares, com o início das filmagens de Retribuição variando entre 1922, 1923 e 1924.[2] Melhor do que se basear em oscilantes pontos de partida é celebrar este momento do cinema em Recife a partir de perspectivas mais estimulantes. O que a mostra Anos 1920, Recife em Tempo de Cinema[3] propõe é colocar a produção pernambucana dos anos 1920 em diálogo com o cinema realizado em outros locais e com curtas-metragens pernambucanos das décadas seguintes. No primeiro caso, títulos produzidos nos anos 1920 na cidade mineira de Cataguases (Tesouro perdido, Humberto Mauro, 1927), na mexicana Orizaba (O trem fantasma [El tren fantasma], Gabriel García Moreno, 1927) e no estado colombiano de Antioquia (Sob o céu de Antioquia [Bajo el cielo antioqueño], Arturo Acevedo, 1925) mostram flagrante proximidade com o que se fazia no Recife. Nas produções regionais latino-americanas, que aconteciam fora das capitais de seus países, aspectos locais se entrelaçavam com modelos estrangeiros (como o filme de aventura hollywoodiano) e gêneros de longa tradição cultural, como o melodrama, configurando um “regional” constituído por elementos locais, mas também por fortes conexões transnacionais.
Se, por um lado, aproximar esses filmes latino-americanos estimula a discussão sobre “produções regionais” no cinema silencioso, por outro lado, propor relações entre filmes realizados no Recife dos anos 1920 e curtas-metragens de momentos posteriores é uma maneira de relativizar a noção de “ciclo”, ao procurar identificar temas e procedimentos que percorrem a cinematografia pernambucana em diálogos, homenagens e embates.
Nos filmes silenciosos pernambucanos se observa tanto o empenho em celebrar o progresso e a modernização do estado quanto o apego aos valores mais tradicionais, quando não o franco preconceito diante das diferenças de classe, raça e gênero. Os curtas sonoros selecionados para compor as sessões oferecem outras leituras em relação a aspectos centrais da vida pernambucana abordados na produção silenciosa: as relações de trabalho e de classe fora da capital (Banguê, Kátia Mesel, 1978); o passado e o presente da história pernambucana sob a ótica glorificante dos discursos oficiais (Fabulário tropical, Geneton Moraes Neto, 1979); a vida e o imaginário em meio às plantações de cana-de-açúcar, nos quais o cinema de extração popular não está ausente (O homem da mata, Antônio Carrilho[4], 2004); as transformações urbanas e as maneiras de traduzi-las para o cinema (Praça Walt Disney, Renata Pinheiro e Sérgio Oliveira, 2011); e o contraponto entre campo e cidade, revelando tensões de raça e classe (Sem Coração, Nara Normande e Tião, 2014). Completando a seleção de curtas está o afetuoso documentário Almeri & Ari – Ciclo do Recife e da vida (1979), com direção do crítico e cineasta Fernando Spencer, de quem partiram incontáveis iniciativas para divulgar e homenagear o cinema realizado em Recife nos anos 1920.
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A produção cinematográfica em Pernambuco atravessou um período de grande atividade na segunda metade dos anos 1920, quando foram produzidos mais de quarenta títulos, todos exibidos comercialmente em salas de cinema, formando um conjunto diverso que inclui tanto curtas quanto longas-metragens, filmes de enredo (ficção) e naturais (não ficção). É uma produção significativa não só devido aos filmes realizados, mas também, e felizmente, pelo número de títulos que foram preservados, entre cópias completas, incompletas e fragmentos. Esta mostra oferece a rara oportunidade de assistir a uma grande parte deste conjunto de filmes preservados.
O título mais antigo da seleção é um fragmento do filme Recife no Centenário da Confederação do Equador, lançado em outubro de 1924. É uma realização da produtora Pernambuco-Film, do italiano Ugo Falangola com o sócio J. Cambieri, que lançaria pouco depois outro natural, Pernambuco e sua Exposição de 1924 (1925). Uma montagem combinando partes dos dois filmes resultou em Veneza americana. Propaganda das realizações do governo Sergio Loreto (1922–1926), em especial das obras de modernização do Porto do Recife, nem por isso Veneza americana deixa de demonstrar apuro técnico e inventividade formal, como na cena em que a câmera reproduz as sensações do cinegrafista ao andar nos brinquedos do parque de diversões.
Enquanto a Pernambuco-Film envolvia-se com a produção de naturais, um grupo se dedicava às filmagens de Retribuição, feitas durante finais de semana, com recursos mínimos e uma câmera de segunda mão. O grupo formava a Aurora-Film, produtora criada pelo diretor Gentil Roiz e o cinegrafista Edson Chagas, que reunia entre outros a atriz Almery Steves, o diretor e ator Ary Severo e, a partir de 1924, Jota Soares, sergipano recém-chegado ao Recife, que trabalhou como ator, diretor e em variadas funções. Retribuição estreou em março de 1925 no Cinema Royal, sendo exibido depois em outras salas da cidade. A trama adaptava para ambientes e tipos locais os confrontos entre mocinhos e bandidos, os raptos e perseguições dos seriados e filmes de aventura hollywoodianos, dos quais os jovens da Aurora eram grandes fãs.
O sucesso de público alcançado por Retribuição estimulou a realização de outros filmes e a criação de novas produtoras. Até o final da década de 1920, pelo menos doze produtoras lançaram curtas ou longas-metragens. Entre 1925 e 1926, Recife se torna um dos principais focos de produção cinematográfica no país, não só pelo número de produtoras em atividade, mas sobretudo porque boa parte delas viabiliza tanto a realização quanto a exibição comercial de seus filmes, o que estava longe de ser desprezível em um mercado ocupado hegemonicamente pela produção estrangeira – como acontece até hoje. Ainda em 1925, a Aurora-Film lança Jurando vingar (Ary Severo, 1925), filme de aventura ambientado no interior, entre as plantações de cana-de-açúcar, e Aitaré da Praia (Gentil Roiz, 1925), quando os realizadores se voltam para uma abordagem mais regional, filmando em uma aldeia de pescadores do litoral pernambucano, mas com a parte final ambientada no Recife.
A cidade do Recife ganha protagonismo em vários filmes, sendo documentada em filmes naturais como Veneza americana, As grandezas de Pernambuco (lançado em 1926 pela Olinda-Film, que apesar do nome tinha sede em Recife) e Carnaval de 1926 em Recife (Aurora-Film, 1926). Também os filmes de enredo incorporam imagens da cidade, como acontece em Filho sem mãe (produção da Planeta-Film com direção de Tancredo Seabra em 1925), Aitaré da Praia, No cenário da vida e especialmente em A filha do advogado (1926), último filme de enredo da Aurora-Film, no qual o diretor Jota Soares faz a trama se desenrolar em meio a uma movimentada paisagem urbana e humana do Recife.
Entre os filmes de enredo, predominam o melodrama e a aventura, mas há espaço para outros gêneros igualmente populares, como a comédia em Herói do século XX (Ary Severo, 1926) e o filme religioso, de que é exemplo História de uma alma (dirigido em 1926 por Eustórgio Wanderley para a Vera Cruz-Film), sobre a vida de Santa Terezinha do Menino Jesus. Em Revezes... (Chagas Ribeiro, 1927), produção da Olinda-Film ambientada no agreste do estado, há uma combinação inusitada entre aspectos religiosos, e mesmo sobrenaturais, com uma abordagem crítica dos maus-tratos do despótico proprietário da fazenda sobre os trabalhadores. A reação de colonos diante da violência de um fazendeiro, mostrada sob a ótica de um filme de aventura, caracteriza outro filme realizado no interior, Sangue de irmão (1927), que Jota Soares dirige para uma produtora criada na cidade de Goiana, na Zona da Mata pernambucana.
As condições de produção oscilam ao longo dos anos. O financiamento do governo do estado é evidente nos naturais produzidos entre 1924 e 1926. As produtoras que realizam filmes de enredo procuram também se capitalizar por meio de sócios que não só investem dinheiro como também trazem algum prestígio para o incipiente cinema local. Na Planeta-Film, o proprietário Paulino Gomes, então braço direito do prefeito do Recife, promove uma exibição especial de Filho sem mãe para o governador. Tendo iniciado a produção de Retribuição em esquema amador, Gentil Roiz e Edson Chagas formalizam a produtora em 1923, tendo como sócio o comerciante Joaquim Tavares, que entra com a maior parte do capital.
Em 1926, já sem Roiz mas ainda com Tavares, a Aurora é conduzida pelo bem-sucedido comerciante João Pedrosa da Fonseca, que injeta dinheiro na produção, o que possibilita à produtora realizar A filha do advogado de forma mais elaborada e com grande investimento em publicidade. No mesmo ano, a Vera Cruz-Film lança História de uma alma, reunindo no elenco nomes de famílias da sociedade e com o aval do Arcebispo de Olinda e Recife, que aparece em cena. É o momento em que o cinema local mais se aproxima do mundo burguês, em termos de financiamento e de temáticas, e ganha maior reconhecimento. Nos anos seguintes, porém, volta-se para esquemas mais precários de produção, quando se conta sobretudo com recursos próprios.
Com o fim da Aurora, Edson Chagas cria a Liberdade-Film, produz a ficção Dança, amor e ventura (Ary Severo, 1927) e se mantém em constante atividade, realizando diversos filmes naturais, entre eles O progresso da ciência médica em Pernambuco (1929), dirigido pelo médico Octavio de Freitas, e Festa em comemoração à passagem do 15º aniversário da Liga Pernambucana dos Desportos Terrestres, em 16.6.930 (1930). A Liberdade-Film e a Spia-Film, criada em 1929 por Ary Severo, serão responsáveis pelos dois últimos filmes de enredo silenciosos produzidos no estado, que estreiam poucos meses depois das primeiras exibições de filmes sonoros no circuito recifense em março de 1930. Nas sessões de No cenário da vida, da Liberdade-Film, lançado em setembro, Jota Soares confere alguma sonorização ao filme, tocando discos durante as projeções. Já Destino das rosas (Ary Severo, 1930), da Spia-Film, mal consegue ser exibido em poucas sessões no mês de novembro, período de grande instabilidade no país devido à Revolução de 1930, com as salas de espetáculos ainda tentando retornar às atividades normais.
A nova (e cara) tecnologia do cinema sonoro dificulta a continuidade de produção. Antes disso, entretanto, a produção em bases profissionais de filmes de enredo já se mostrava pouco viável. A dificuldade em distribuir os filmes para além do circuito local não permitia às produtoras condições financeiras para manter os profissionais em atividade, vivendo de cinema e produzindo de forma contínua. Com o cinema sonoro, mesmo a produção de filmes de não ficção só seria retomada em bases mais estáveis a partir da segunda metade dos anos 1930 com a Meridional Films, que viria a produzir o primeiro longa sonoro pernambucano, Coelho sai (Newton Paiva, 1942).
[1] Cunha Filho, Paulo C. (ed.). Relembrando o cinema pernambucano – Dos arquivos de Jota Soares. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2006, p. 69.
[2] Na plaqueta História da cinematografia pernambucana (Fase compreendida entre os anos de 1923 e 1931), de 1944, Jota Soares e o coautor Pedro Salgado Filho localizam em 1924 o início da filmagem de Retribuição, adotando o ano de 1923 como data inicial por marcar a chegada ao Recife de Ugo Falangola e J. Cambieri, da Pernambuco-Film. Já a série de Jota nos anos 1960 informa que a produtora estava instalada no Recife desde 1920. No documento “Relação completa e real dos filmes produzidos na fase do pioneirismo, entre os anos 1922/1931”, de 1970, Jota aponta 1922 como o ano da criação tanto da Pernambuco-Film quanto da Aurora, com Retribuição sendo realizado entre 1923 e 1924. O diretor Gentil Roiz, em questionário preparado por Jota Soares em 1963, responde que as filmagens de Retribuição começaram “em setembro de 1922 (vago)” e se estenderam durante vinte meses.
[3] Título inspirado no livro Brasil em tempo de cinema (1967), de Jean-Claude Bernardet.
[4] Creditado no filme como Antônio Souza Leão [N.E.]