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Billy Woodberry e a emancipação das imagens

31 de maio de 2023

A mostra Billy Woodberry em retrospectiva acontece no cinema do IMS Paulista de 6 a 30/6. Na abertura, após a exibição de Abençoe seus pequeninos corações, o cineasta participa de um debate com a autora deste texto.

Um grupo de garotos negros passeia por espaços urbanos. Juntos fazem de uma estação aparentemente abandonada seu quintal particular. Juntos exploram o lugar. Juntos se divertem. A câmera atenta observa a diversão, e nos deixa ver as particularidades de cada um deles que, mesmo caminhando e assoviando juntos, apresentam uma dissonância em sons e gestos. Ombreados, são um só e são múltiplos naquele amplo ambiente inóspito. Entre eles, está Ray. Mais tarde o vemos na sozinhez urbana, em direção a uma mulher que ele tenta assaltar. A mulher acaba, ela também em sua sozinhez, por confrontar/encontrar esse garoto, que é tantos outros. E aquela mulher – uma trabalhadora de lavanderia – é também uma comunidade inteira a acolher, alimentar e aconselhar o menino. “Agora você vai para casa”, diz ela. A constrição dos planos que mostram ela e ele intensifica o encontro das duas solidões-multidões negras. O olhar do menino para a (im)possibilidade de voltar para casa é dilacerante. A bolsa (The Pocketbook), segundo filme[1] de Billy Woodberry, é inspirado no conto “Thank You, Ma'am”, de Langston Hughes.

Nos anos 1970 e 1980, estudantes racializados entraram na Escola de Teatro, Cinema e Televisão na Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), graças a um programa institucional análogo ao que conhecemos no Brasil como de ações afirmativas/cotas. Em meio às turbulências políticas e sociais dos anos pós-1968 e no coração da indústria cinematográfica estadunidense, os chamados “people of color” – grupo populacional não branco composto por pessoas negras, asiáticas, chicanas e indígenas nos EUA – formaram na universidade uma comunidade que partilhava uma visão de mundo não hegemônica, referências da intelectualidade negra radical naquele país e uma energia propositiva de questionamento da sociedade e dos poderes do mercado cinematográfico representado por Hollywood. Também compartilharam referências – sobretudo dos movimentos do então chamado “Terceiro Mundo”, no que eles mobilizavam de ideais/utopias que inspiravam movimentos cinematográficos. Woodberry ampliou, na roda da partilha, sua formação em estudos latino-americanos anterior à UCLA e sua curiosidade pelos cinemas de outras diásporas afro-atlânticas.

 

Cena de Abençoe seus pequeninos corações, de Billy Woodberry

 

Naquelas duas décadas, como nos conta o material produzido pela própria UCLA acerca do movimento,[2] estudantes estabeleceram uma troca geracional em que os veteranos acolhiam e mentoravam os calouros. E eram apresentados – em sala de aula ou em cineclubes – às cinematografias revolucionárias europeias e latino-americanas e aos cinemas africanos dos anos 1960/1970. Contemporâneo de Larry Clake, Haile Gerima, Julie Dash e Charles Burnett (que operou uma das câmeras em A bolsa e trabalhou com ele em outros filmes, como Abençoe seus pequeninos corações), Billy Woodberry foi um desses estudantes que integraram o movimento de jovens realizadores negros nomeado como L.A. Rebellion (a Rebelião de Los Angeles).

Ben Caldwell, um dos integrantes do movimento, descreveu o conjunto de filmes realizado pelo grupo como um esforço de “emancipação das imagens”. Na introdução de L.A. Rebellion: Creating a New Black Cinema (University of Californa Press, 2015), Alyisson Nadia Field, Jan-Christopher Horak e Jacqueline Najuma Stewart apontam que “os experimentos com a forma fílmica romperam com as gerações anteriores de realizadores negros com o objetivo de interrogar, em níveis mais profundos, como as imagens em movimento construíam noções de raça, classe e gênero, particularmente para uma audiência negra”.

É isso que Woodberry segue fazendo, por exemplo, em Uma história da África (A Story From Africa, 2019), partindo da percepção dos mecanismos de colonização dos imaginários em si próprio e desconstruindo/expandindo a compreensão da própria ideia de dominação. Ao articular imagens de um acervo fotográfico do exército português, na campanha de pacificação de 1907 em Angola, o diretor “escova a história a contrapelo”, como nos ensina Walter Benjamin, e, ao mesmo tempo, nos revela o tempo espiralado da resistência negra, apontando o que aquelas imagens guardam da “luta e a reacção das populações nativas ante as campanhas de conquista e a subjugação colonial”,[3]

Em minha recente pesquisa,[4] tenho tentado compreender o que pode haver de semelhanças e aproximações a grupos ou estilos mais ou menos coesos que empreenderam agenciamentos coletivos da noção de identidade negra a partir de vivências afro-diaspóricas.[5] Os filmes e o contexto da L.A. Rebellion, me parece, nos ajudam a compreender o que vemos por aqui com a recente emergência de um grupo heterogêneo de realizadores negros que reconfiguram o que conhecemos como Cinema Brasileiro. Para além da realização, existe uma multiplicidade de sujeitos negros em interação, em campos como os da pesquisa, crítica e curadoria, constituindo um campo que tenho chamado de QuilomboCinema.

Há importantes paralelos a considerar entre o fenômeno brasileiro recente e o estadunidense dos anos 1970/1980: o contexto de lutas por direitos e a circulação de produção intelectual negra e antirracista; o indutor de acesso de estudantes não brancos ao ensino formal universitário; o pensamento crítico desenvolvido a partir do contato com cinematografias africanas e afro-diaspóricas; as proposições temáticas e formais voltadas a audiências negras; e os sensos de pertencimento e de partilha.

Ao interpretar os movimentos negros no Brasil – particularmente o que foi feito no campo das artes pelo Teatro Experimental do Negro/Abdias do Nascimento nos anos 1940 e a organização formal e informal da resistência à ditadura nos anos 1970 –, a historiadora Maria Beatriz Nascimento nos ensina que quilombo, para além do histórico e mítico território de refúgio e vida, pode ser um “instrumento ideológico”, “símbolo de resistência” que no campo do ativismo e das práticas artísticas “fornece material para a ficção participativa”.

“A investigação sobre quilombo se baseia e parte da questão do poder. Por mais que um sistema social domine, é possível que se crie aí dentro um sistema diferenciado, e é isso que o quilombo é. Só que não é um Estado de poder no sentido que a gente entende – poder político, poder de dominação – porque ele não tem essa perspectiva. Cada indivíduo é o poder, cada indivíduo é o quilombo. [...] Então, nesse momento, a utilização do termo quilombo passa a ter uma conotação basicamente ideológica, basicamente doutrinária, no sentido de agregação, no sentido de comunidade.”[6]

O QuilomboCinema Brasileiro – e, arrisco dizer, algo da L.A. Rebellion que pode ser percebida na obra de Woodberry – é o lugar dessa “ficção participativa”. Retomando as palavras de Caldwell, os cinemas negros como esse espaço de “emancipação das imagens” seriam um modo de gingar com a posição subalternizada, contra o carrego colonial e em dinâmicas fabulatórias de existências negras possíveis, ampliando as possibilidades de territórios simbólicos, memórias e pertenças.

Na sequência inicial de A bolsa, o grupo de adolescentes se diverte explorando uma parte da cidade, ressignificando os objetos, os espaços, transitando com uma naturalidade afrontosa por lugares proibidos. Há ali um senso de pertencimento, uma coragem de estar naqueles lugares como algo possível ao grupo e não ao indivíduo isolado. Há também sintonia sem sincronicidade, com os movimentos numa mesma direção, mas resguardando suas particularidades. Ao olharmos parte da filmografia de Woodberry reunida nesta mostra, podemos compreender os interesses e as influências, os gestos de uma autoria e as proposições do realizador. Mas, também, podemos entrever ali o pertencimento a algo verdadeiramente coletivo.

 

[1] Em entrevista à Black Film Review (n. 4, 1984), Woodberry conta que seu primeiro filme, baseado em uma canção de John Lee Hooker – “Whiskey and Women” – foi feito em super-8 durante um curso de história do jazz e blues ministrado por Lance Williams. O filme, segundo o diretor, se perdeu.

[2] Há produtos resultados de um projeto em torno da restauração de filmes e sistematização das informações em torno do movimento e que integram o Project One Films: entre eles, o catálogo da mostra L.A. Rebellion: Creating a New Black Cinema, realizada em dezembro de 2011, e um livro de mesmo nome, lançado em 2015, e que reúne ensaios críticos. As informações estão disponíveis em: www.cinema.ucla.edu/la-rebellion/story-la-rebellion.

[3] Em entrevista a Marta Lança. Afroscreen, out. 2019. Disponível em: www.buala.org/pt/afroscreen/a-story-from-africa-entrevista-a-billy-woodberry.

[4] Proposta para doutoramento no PPGCom/UFMG: O Cinema Negro Brasileiro e seus corpos-ficção: identidade e fabulações afro-diaspóricas em curtas-metragens contemporâneos dirigidos por pessoas autodeclaradas negras.

[5] Além da L.A. Rebellion, tomo como referência também o Black Audio Film Collective e o Sankofa Film and Video Collective, ambos do Reino Unido.

[6] Maria Beatriz Nascimento. Ôri. Filme de Raquel Gerber, 1989.

Professora e pesquisadora em cinema e audiovisual, Tatiana Carvalho Costa é presidenta da APAN e integrante do Ficine. Desde 2012, colabora em cineclubes, mostras e festivais de cinema em júris e curadorias.