A mostra Bruce Conner: colagens e deslocamentos, com um recorte da obra do artista norte-americano, está em cartaz no cinema do IMS Paulista a partir de 19/11 e no cinema do IMS Rio a partir de 24/11
Algumas vezes, uma imagem acidentalmente se encaixa em outras imagens e cria um tipo de contexto emocional semelhante a uma estrela de cinema dando um tapa em um homem e o trem passando por um penhasco.
Bruce Conner, em entrevista publicada em 1993 no livro Recycled Images: The Art and Politics of Found Footage Films.
Muito antes da avalanche de imagens em movimento (profissionais ou amadoras) com as quais convivemos diariamente, não só nos meios de comunicação, mas, sobretudo, graças ao fenômeno mais recente das redes sociais, Bruce Conner (1933-2008) já se debruçava criticamente sobre a profusão de imagens desde os anos 1950, tanto em seu trabalho em artes visuais quanto em seus filmes experimentais; estes últimos, o foco da programação do cinema do IMS. "Meus filmes são o 'mundo real'. Não são um objeto encontrado. É isso que eu vejo como fenômeno ao meu redor. Pelo menos é o que eu chamo de 'mundo real'”, dizia Conner. Ao retrabalharem o mundo real, seus filmes, produzidos ao longo de mais de 50 anos, discutem alguns dos principais temas da segunda metade do século passado: a liberação sexual feminina, o perigo nuclear, a produção de mitos políticos, a persuasão da propaganda comercial.
Bruce Conner se insere em uma tradição de cineastas que produzem found footage films (filmes com materiais encontrados, em tradução literal do inglês), que são produzidos com materiais de arquivo, mas não apenas. A apropriação de materiais não filmados por si é um procedimento que existe desde o início do século passado, utilizado, por exemplo, no documentário A queda da dinastia Romanov (1927), de Esther Shub. No entanto, o que diferencia um filme como o de Shub do trabalho que desenvolve Conner e outros cineastas que trabalham com materiais apropriados, como Ken Jacobs, Peter Tscherkassky e Gustav Deutsch, é o grau de intervenção em cada um, ou seja, o quanto cada diretor se limita a compilar material em torno de um tema e o quanto retrabalha significações a partir dos “materiais encontrados”, principalmente via montagem (obedecendo assim aos preceitos de Lev Kuleshov, contemporâneo de Shub). No caso de Conner, números musicais, filmes B, propagandas, cinejornais, starts e filmes militares foram fontes para a criação de uma obra que busca, via fricção de imagens díspares, ressignificações dos propósitos iniciais das imagens e novos sentidos oriundos dessas junções.
Esse “cinema de fricção” não existe somente enquanto colagem de materiais aleatórios – Conner se faz valer de uma série de mecanismos de montagem que criam filmes muito agudos em termos conceituais (como as críticas políticas de RELATÓRIO e ASSASSINATO TELEVISIVO) ao mesmo tempo que não perdem uma dimensão sensorial e se valem de um tipo de humor particular. Os filmes se tornam palpáveis seja pela alta velocidade dos cortes (RAIO CÓSMICO etc.), pela inversão (BREAKAWAY) ou ainda pela dilatação do tempo e do espaço (CROSSROADS). Em constante mutação, sua obra dissolve também a noção de autor enquanto persona genial que cria algo do “nada” (noção refutada pelo próprio Conner em várias ocasiões). Isso acontece pela própria lógica de apropriação e também pelo método de trabalho do artista: muitas vezes, em colaboração estreita com amigos e parceiros, como a artista Vivian Kurz (VIVIAN), a coreógrafa e cantora Toni Basil (BREAKAWAY) e o músico minimalista Terry Riley (CROSSROADS).
A seleção apresentada no cinema do IMS compreende a maior parte da obra fílmica de Conner, dividida em quatro programas distintos, em cópias restauradas em digital e 16 mm. Os filmes CROSSROADS (exibido junto com a performance fílmica O digital explosivo inevitável, de Ross Lipman, sobre o processo de restauração do filme), RELATÓRIO e ASSASSINATO TELEVISIVO partem de momentos centrais da história americana, como os experimentos nucleares no Atol de Bikini e o assassinato do presidente John F. Kennedy. Em CROSSROADS, as explosões nucleares (vistas de ângulos distintos) são lentificadas e, combinadas à trilha de Patrick Gleeson e Terry Riley, se tornam uma espécie de coreografia macabra, que remete às tensões geopolíticas do pós-guerra. RELATÓRIO se debruça sobre as infinitamente vistas tomadas do assassinato de John F. Kennedy, interrogando visualmente essas imagens e também a transformação de Kennedy em um mito. Como observa Bruce Jenkins em seu texto “Contestando Camelot: RELATÓRIO de Bruce Conner”, é na repetição dessas imagens já conhecidas que o artista analisa de forma mordaz o grotesco que havia na exploração do assassinato por parte dos grandes veículos de comunicação; é também na correlação visual entre o start da película e o anúncio da morte de JFK e da posterior investigação, que Conner ironiza a construção do mito em torno de Kennedy. Exibido junto com RELATÓRIO, ASSASSINATO TELEVISIVO é uma forma de continuação do mesmo tema, dessa vez em torno da mercantilização desse assassinato, uma espécie de crônica das impressões de Conner (como definiu Stan Brakhage) e dessa transformação de personas políticas em produtos a serem consumidos.
O programa Entre luz e sombras põe em evidência procedimentos que perpassam todos os outros filmes, no caso, os procedimentos de montagem adotados por Conner, entre imagens que se revelam e se escondem. Partimos do clássico UM FILME, em que momentos extremos da experiência humana (guerra e conflitos, corridas de carros, um casal que se equilibra diante do vazio) são colocados juntos, como uma celebração das possibilidades associativas dos “filmes encontrados ao acaso”, em uma montagem associativa herdeira dos preceitos de início do cinema soviético. FILME DE DEZ SEGUNDOS é literalmente o que anuncia o título: em dez segundos, compostos na maior parte por pontas de filme entremeadas por algumas cenas de outras produções, numa inversão em que o invisível do filme enquanto objeto material (start, pontas e outros materiais técnicos) se torna o foco principal. PROCURANDO COGUMELOS é um filme psicodélico de viagens, uma caçada de cogumelos entre o México e os EUA que se apresenta aqui em duas versões – uma com a música “Tomorrow Never Knows”, dos Beatles, e outra ligeiramente mais longa, com música de Terry Riley. Em MEA CULPA, realizado a partir de filmes educativos, em conjunto com música de David Byrne e Brian Eno, a tela se transforma em uma espécie de pinball cinematográfico. Por último, MANHÃ DE PÁSCOA é o último filme de Conner, um ensaio enigmático, novamente com trilha de Terry Riley, em que o artista se debruça essencialmente sobre as diversas texturas visuais possibilitadas pelo esgarçamento temporal e pelo reenquadramento dos materiais utilizados.
Nos filmes que compõem o programa Mulheres de celuloide, a atenção de quem os assiste é engajada principalmente pela presença de corpos femininos, embalada por usos irônicos de canções pop. Estruturado a partir da canção “What’d I Say”, de Ray Charles, RAIO CÓSMICO é o primeiro desses filmes a desconstruir o corpo feminino, o da artista Beth Pewter, que colaborou voluntariamente com Conner – o êxtase sexual dado pela música de Ray Charles é mimetizado na montagem ácida, muitas vezes em sobreposição, desse corpo que dança com Mickey Mouse, com a bandeira americana, com canhões, em arrebatamento bélico e mortífero. VIVIAN, que tem uma exposição do próprio Conner como cenário, parte do retrato em movimento de Vivian Kurz, ao som da versão de “Mona Lisa”, interpretada por Conway Twitty, para quiçá indagar menos sobre Vivian em si e mais sobre a condição que ela representa enquanto objeto de exposição (num duplo entre a mulher no filme e a mulher na vitrine), já que não sabemos se o que vemos diante da tela é real ou é apenas uma obra de arte adorável, fria e solitária, como já diz a letra da canção. MARILYN VEZES CINCO é um estudo repetitivo do corpo de uma mulher, supostamente Marilyn Monroe, embalado pela letra de “I’m through with Love”, cantada pela própria: “Por que você me levou a pensar que poderia se importar? Você não precisava de mim, tinha sua parte“. Em pedaços de corpo e repetições, a robustez desse simulacro do corpo mais do que conhecido de Marilyn Monroe reitera sua função como objeto visual a ser consumido, ao mesmo tempo que afirma “I am through with love”, que está farta desse amor, um sentimento que nesse caso é pura fascinação voyeurística.
Desta seleção, BREAKAWAY é o filme no qual Conner colaborou mais estreitamente com o tema de seu escrutínio visual, no caso a cantora e coreógrafa Toni Basil. Como aponta Johanna Gosse em seu texto “Pop, colaboração, utopia: BREAKAWAY em Los Angeles, 1964, 1966”, “ao invés de documentar os movimentos de Basil a partir de uma distância fixa e em perspectiva estável, Conner se movimenta junto com ela [...]. Essa maneira coreografada de filmar implica em um modo mais aberto e participativo de autoria, que em parte desestabiliza o clássico binário do autor (homem), dono do olhar (looking object) e (mulher) objeto desse olhar, mesmo se no fim incorra nessa dinâmica, com Conner controlando a câmera e Basil performando diante dela.” Basil quer romper com o dia a dia, como ela canta, um subtexto também para a liberação sexual feminina, que estava em curso nos anos 1960. Ainda que produto de uma utopia da colaboração horizontal protofeminista, para Gosse, Conner e Basil fazem do “eterno feminino” “um transe espectral, um eco misterioso, e atração elusiva, equilibrada precariamente à beira da desmaterialização corporal e do colapso total”.
Em célebre carta para a galerista Paula Kirkeby, Bruce Conner se descreve como “um artista, um antiartista, um feminista, um profundo misógino, um romântico, um realista, um surrealista [...], minimalista, um pós-modernista [...], espiritual, profano, um homem da renascença na arte contemporânea e um dos mais importantes artistas contemporâneos”. Como ele nota, cada um dos antagonismos presentes nas descrições que fazem do trabalho dele é verdade. Na continuação desse gesto libertário presente em cada um dos filmes feitos por Conner que recusam definições categóricas, cabe a cada pessoa tirar suas próprias conclusões. Que assim seja.