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De volta ao Cabra

15 de janeiro de 2024

Desde seu premiado lançamento no 1º FestRio, em novembro de 1984, Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, acumula bagagem histórica e cultural com poucos paralelos na história do cinema brasileiro. Em votações promovidas pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) em 2016 e 2017, foi eleito o quarto melhor longa-metragem brasileiro de todos os tempos, e o melhor documentário. Na mais recente enquete da revista inglesa Sight and Sound, Cabra foi o brasileiro mais bem votado. Se, por um lado, a permanência no imaginário traz grande visibilidade ao filme, por outro, ela vem acompanhada de uma fortuna crítica e teórica que, paradoxalmente, pode inibir que o filme se renove.

Lançado nos últimos suspiros da ditadura militar, Cabra é o primeiro documentário de longa-metragem de nosso mais importante documentarista – cineasta farol para o cinema brasileiro nas décadas seguintes. No entanto, à época de seu lançamento, ele marcava o retorno de um cineasta de ficção pouco celebrado, há 15 anos afastado da direção para cinema, e com carreira então invisível na televisão e como roteirista. Coutinho, o grande realizador e teórico do documentário, ainda não existia. Sua famosa técnica de conversações levaria anos para ser desenvolvida, e a austeridade formal de Santo forte (1999) passa longe do hibridismo eclético de seu primeiro longa de não ficção.

Como frequentemente apontado na historiografia do cinema brasileiro, Cabra marca a transição entre dois momentos: o engajamento político de estética radical dos anos 1960 no CPC da UNE e no Cinema Novo (com todas as suas divergências), e a autorreflexividade que marcaria o cinema de autor das décadas seguintes. Essa justaposição não raro é usada para projetar uma narrativa de regeneração do militante arrependido, que revisita o passado para purgar seus erros. Uma revisão de Cabra em 2024 demanda uma reavaliação desse legado, e da leitura neoliberal que coroou Coutinho como o “cineasta dos indivíduos”. Em entrevista ao jornal O Globo em 21 de maio de 1984, meses antes da estreia do filme, o próprio cineasta deu a pista:

O CPC [...] teve gravíssimos erros que não serão repetidos, mas pode-se aprender com eles. O que era importante naquele momento [...] era a possibilidade de contato com outras classes sociais [...] Me permitiu fazer um filme, aprender muito e voltar para terminar. O que houve de 64 para cá [...] é que este contato desapareceu. Então, no fundo, você é muito mais distante do seu país do que antes. Você hoje conhece as classes populares pela sua empregada.

A obra de Eduardo Coutinho ruma não à negação da política, mas ao seu reencontro nas relações intersociais. Potente em seu momento histórico, essa ideia é ainda mais radical hoje, quando o desejo de alteridade parece ter perdido espaço diante da introjeção da lógica de propriedade na produção cultural, política e intelectual. Em vez disso, Cabra expressa aquilo que Denise Ferreira da Silva chama de “diferença sem separabilidade”, onde “a diferença não é uma manifestação de um estranhamento irresolvível, mas a expressão de um emaranhamento elementar”. O filme se debruça sobre esse emaranhamento, ciente de que a força de estar junto se deve, também, às suas contradições.

Cena de Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho

Nesse sentido, é notável que o lançamento da restauração do filme em DVD, em 2014, tenha motivado o cineasta a fazer o que sempre desaconselhava: “Voltar ao lugar do crime”. Em 2013, Coutinho retorna às locações do Cabra para rever, uma vez mais, seus antigos companheiros de filmagem. Por lá, realiza dois filmes como material extra no DVD, e que terminaram sendo os últimos concluídos pelo diretor: Sobreviventes de Galileia (2013) e Família de Elizabeth Teixeira (2013). Se essa breve sinopse pode sugerir uma compreensível autocelebração, Sobreviventes e Família prolongam ainda mais as contradições do projeto inicial. Assim como Cabra, os médias mesclam filmagens no presente com imagens do filme original, transformado em arquivo, e entrevistas realizadas anos antes por Cláudio Bezerra. No entanto, se o longa de 1984 misturava estratégias de diversas escolas do documentário – inclusive a reportagem para televisão – para implicar o tempo histórico e pessoal nos caminhos percorridos pelo cinema brasileiro, 30 anos depois é necessário considerar também a estética desenvolvida pelo próprio Coutinho desde então: são dois filmes de conversa. O presente se projeta sobre o passado.

Sobreviventes da Galileia desdobra a luta das Ligas Camponesas nas políticas públicas dos governos Lula e Dilma Rousseff, tendo em Duda/Dão da Galileia um representante local do Partido dos Trabalhadores. Se o filme de 1984 deslocava o protagonismo de João Pedro Teixeira – em quem se concentrava o roteiro de 1964, recentemente lançado em e-book gratuito pelo IMS – para Elizabeth Teixeira, Sobreviventes mostra a passagem de bastão de Cícero, velho militante da Liga, para seu filho, Wilson, que adapta suas atividades para um Brasil de políticas públicas e movimentos como o MST.

A família se torna espinha dorsal em Família de Elizabeth Teixeira, que inclui conversas com Elizabeth, seis dos seus filhos, três netos e netas e um irmão. Nesse filme, os efeitos duradouros do trauma de 1964 se mostram de maneira ainda mais potente, incluindo o legado do próprio Cabra. Essa ambivalência se torna desconcertante em Marinês – filha de Elizabeth e João Pedro, e uma das grandes personagens filmadas pelo diretor. Em dado momento, Marinês especula as razões pelas quais sua mãe, e seus irmãos Isaac e Carlos, jamais fizeram movimento mais assertivo pela reintegração familiar após o diretor ter localizado os sobreviventes da família. “É como se você tivesse vendo um filme”, ela diz. “Você vê um bom filme, você chora, você sente, você ri, mas não é a tua vida. É um filme.” A história da família, que se tornou um filme, sobreviveu como um filme, se reencontrou por um filme, é também a história do filme que se tornou a família e transformou-a em história, em algo de certa maneira externo a ela mesma.

Mas, ao virar um filme, essa história também pôde ser vista e revista, em busca de passados, presentes e futuros que a transcendem, e só se revelam com o tempo, pois ao tempo o cinema pertence, e só no tempo o cinema existe. Quase 60 anos depois, o Cabra continua vivo.

 

Cabra marcado para morrer será exibido no IMS Paulista e no IMS Poços ►
A família de Elizabeth Teixeira + Sobreviventes da Galileia serão exibidos no IMS Paulista ►