Idioma EN
Contraste

Blog do Cinema Veja Mais +

Vamos fugir

28 de abril de 2022

Em tempos de sufoco, como os que estamos vivendo no Brasil e no mundo, pode vir a calhar um bom filme escapista, desses em que Hollywood se especializou desde o cinema mudo. É o caso de Cidade perdida, em cartaz nas melhores salas do ramo.

O filme dos irmãos Aaron e Adam Nee empreende uma reciclagem interessante da fórmula romance + aventura + humor, que, em proporções variadas, vem pelo menos desde Buster Keaton. É o que se pode chamar de “entretenimento inteligente”.

O ponto de partida é semelhante ao de sucessos dos anos 1980, como Tudo por esmeralda e as sagas de Allan Quatermain (A cidade do ouro perdido, As minas do rei Salomão), ou mesmo da série de Indiana Jones: Loretta Sage (Sandra Bullock), escritora de romances populares de aventura, é sequestrada por um bilionário (Daniel Radcliffe) para ajudá-lo a desvendar uma inscrição antiga e encontrar um tesouro milenar escondido numa cidade soterrada por um vulcão.

A atualização da fórmula se dá não apenas pela incorporação, no enredo, das tecnologias mais avançadas de transporte, comunicação e prospecção, mas principalmente pela caracterização da sociedade contemporânea, com seus magnatas excêntricos, seu culto às celebridades e aos “influenciadores digitais”, sua cultura do imediatismo, seu consumo descartável.

 

Mulher no comando

Uma mudança essencial se dá no papel desempenhado pelos gêneros: Loretta, a mulher, é quem comanda as ações e enfrenta o vilão e seus comparsas; o fortão Alan (Channing Tatum), modelo das capas dos livros da escritora, é o bobalhão frágil que mais a atrapalha do que ajuda. “Quer dizer que eu sou a donzela em perigo?”, questiona ele a certa altura. Isso nos leva a outra virtude do filme, que é a autoironia. (Certamente faz parte dessa ironia escalar o ator de Harry Potter como o ricaço malvado que despreza a magia e só se interessa por dinheiro, poder e fama.)

O personagem que cumpre a função de herói varonil, o treinador de sobrevivência na selva e guru de meditação Jack Trainer (Brad Pitt), é uma caricatura impagável desse tipo de personagem, com suas façanhas ostensivamente inverossímeis e seu destino inesperado, ou antes, seus dois destinos inesperados, como saberá quem ficar até a cena depois dos créditos finais.

A qualidade maior de Cidade perdida talvez seja a de se equilibrar sobre uma corda bamba, fornecendo tudo o que se espera da fórmula citada – ação ininterrupta, paisagens pitorescas, culturas exóticas, maniqueísmo explícito, amor que surge entre um casal que vive às turras – e, ao mesmo tempo, fazendo a sátira disso tudo, num movimento que beira a metalinguagem.

A escritora Loretta Sage queria ser uma arqueóloga respeitada, como seu finado marido, e se ressente de ganhar a vida escrevendo folhetins baratos. Alan, o grandalhão de poucas luzes, a repreende: “Você não devia menosprezar seus livros, porque isso ofende os milhares de leitores para quem eles são importantes”.

De certa forma, é como se ele estivesse falando sobre o próprio cinema de entretenimento em que Cidade perdida se enquadra. É nesse jogo de espelhos ao mesmo tempo crítico e amoroso que o filme nos envolve, livrando-nos por um para de horas dos horrores da vida aqui fora. Não é pouca coisa.