Talvez não por acaso, o cinema brasileiro de horror vive um florescimento nos últimos anos. A décima edição do festival internacional Cinefantasy, que começa domingo (6 de setembro), é mais uma comprovação disso. Dos cinco longas-metragens nacionais programados, três são explicitamente de terror, e vêm de três estados diferentes: Espírito Santo, Minas Gerais e Maranhão.
O mais ambicioso, em termos de temática e de produção, é o épico capixaba O cemitério das almas perdidas, do “especialista” Rodrigo Aragão, que abre o festival, fora de competição. O cineasta ganha também uma retrospectiva de sua filmografia, de Mangue negro (2008) a A mata negra (2018).
Reino de atrocidades
A narrativa de O cemitério atravessa os séculos. Começa em um navio vindo da Europa, que só não afunda numa tempestade porque um padre jesuíta a bordo convoca o poder do demônio para fazer a calmaria. No Novo Mundo, os amaldiçoados instauram um reinado de atrocidades.
Convertidos em mortos-vivos, aterrorizam pessoas incautas que, por um motivo ou por outro, têm contato com eles: um menino que busca uma pipa extraviada, uma trupe nômade de circo que chega ao vilarejo vizinho, etc.
Aos poucos, entre cenas de violência e horror sobrenatural cuja estilização lembra não apenas o Zé do Caixão, mas também os filmes de Mario Bava, vai se delineando toda uma leitura da formação social brasileira, das relações do ocupante europeu com os índios e os negros, do papel da religião cristã nessa civilização da cruz e da espada.
Com fotografia e direção de arte elaboradas, cujas referências vão da pintura barroca às histórias em quadrinhos, passando pelo cinema expressionista, bem como sofisticados efeitos visuais e de maquiagem (área de origem de Aragão), o filme nunca perde de vista essa ancoragem histórica. Seu ponto fraco, a meu ver, é aquilo que talvez mais atraia o público juvenil aficionado do gore: a profusão de cenas de luta, sangue e vísceras.
Os gritos, golpes, sustos e reviravoltas, num crescendo de brutalidade, lembram os videogames do gênero, correndo o risco de enfastiar e, paradoxalmente, anestesiar o espectador. Eu, pelo menos, torço para que essas batalhas terminem logo e se retome o fio da história, do destino dos personagens.
Terror rural
Sangue e vísceras não faltam também em Cabrito, longa de estreia de Luciano de Azevedo, mineiro de Juiz de Fora. Aqui se trata, de certo modo, dos monstros nascidos das profundezas católicas da família brasileira. Canibalismo, incesto, parricídio, esquartejamento, necrofilia. Numa palavra: loucura, já que boa parte do que vemos na tela podem ser projeções de uma mente doentia.
Dividido em três partes, filmadas inicialmente como curtas independentes, o filme se ressente um pouco da articulação forçada entre elas, gerando uma certa confusão de tempos e personagens. Mas o conjunto é muito forte, configurando uma espécie de “terror rural”, cujas referências são elementos da cultura popular interiorana, incluindo uma impagável trilha de música caipira. Faz pensar numa mistura de Humberto Mauro com José Mojica e Ozualdo Candeias, só que com produção caprichada.
Amor e morte
Uma outra linha do cinema de horror vem do Maranhão, com Terminal Praia Grande, da também estreante em longa Mavi Simão. Rodado em São Luís, narra com sagacidade e delicadeza uma história de fantasma, mais do que de morto-vivo.
Não se pode dizer muito do enredo, para não atrapalhar as descobertas. Digo apenas que há uma moça solitária que reencontra por acaso num supermercado um amor do passado e o convida para uma festinha animada. Embora demore um pouco a engrenar, pela duração excessiva de certas cenas cotidianas, o filme trabalha com inventividade a construção descontínua do tempo narrativo, embaralhando passado e presente, sonho e vigília, realidade e fantasia.
Há um bom aproveitamento da paisagem urbana e pelo menos uma cena antológica: num ônibus ocupado por mortos-vivos (ou fantasmas), o “motorista” comanda mecanicamente os gestos das criaturas.
É, para resumir, uma bela história de amor além da morte.
Os dois outros filmes brasileiros programados são apresentados como documentários. O paraibano O seu amor de volta (mesmo que ele não queira), de Bertrand Lira, mistura um tanto de realidade e um tanto de ficção ao mostrar histórias de pessoas que vão procurar videntes para tentar entender e resolver seus casos de amor e solidão. Entre os “clientes” entrevistados estão três atrizes conhecidas (Marcélia Cartaxo, Danny Barbosa e Zezita Matos), o que faz desconfiar da veracidade das histórias e lembrar de Jogo de cena, de Eduardo Coutinho. O depoimento de Marcélia, por exemplo, mistura elementos de sua biografia real com episódios da vida de Macabéa, sua personagem em A hora da estrela. [o trailer: https://vimeo.com/316149860 ]
Atravessa as histórias o tema dos gêneros sexuais, em particular a situação da mulher e a condição dos transgêneros. Desenha-se, no conjunto, todo um mundo de relações humanas em transformação, sob o pano de fundo da moral social e das crenças místico-religiosas.
Por fim, George Hilton – O mundo é dos audazes, realizado pelo brasileiro radicado na Itália Daniel Camargo, retraça por meio de depoimentos e imagens de arquivo a incrível trajetória do ator uruguaio Jorge Hill, que adotou o nome de George Hilton para atuar na Itália em faroestes-espaguete e em filmes do gênero giallo (o estiloso suspense sangrento italiano). Só esta última circunstância justifica a inclusão do documentário num festival de cinema fantástico. De todo modo, é um programa fascinante para quem se interessa pelo cinema popular italiano dos anos 1960 e 70.
Suspense uruguaio
E para não dizer que só falei dos brasileiros, há na programação um suspense uruguaio de primeira, Na pedreira, longa de estreia dos irmãos Bernardo e Rafael Antonaccio. O que começa como um churrasco de amigos jovens à beira de um lago evolui, num crescendo de tensão erótica e ressentimento social, para uma explosão de violência. Com apenas quatro personagens (uma mulher e três homens), numa única locação e simulando uma narração em tempo real, o filme consegue um resultado notável, trazendo à tona profundos descompassos culturais e atritos de gênero.
O cinema de horror, quando acerta a veia, revela o inferno que indivíduos e sociedades trazem escondido dentro de si. Talvez por isso esteja tão em voga entre nós.