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Cinema de letras

16 de abril de 2020

Um bom livro é uma conversa silenciosa e inteligente. Se um dos assuntos principais for o cinema, então, vale por muitas reuniões em torno da fogueira ou da mesa do bar. É o caso do recém-lançado Vai começar a sessão (Companhia das Letras), do crítico e ensaísta carioca Sérgio Augusto, referência central do jornalismo cultural brasileiro há mais de cinco décadas.

O volume reúne artigos publicados neste século na imprensa, em sua maioria no jornal O Estado de S. Paulo, onde Sérgio escreve toda semana. Neles, o autor discorre sobre temas que vão desde os percalços sofridos pelas atrizes lésbicas nos anos 1930 a 1950 até os paralelos espantosos entre Hitler e Chaplin, passando pela influência de Richard Wagner sobre as trilhas musicais do cinema, a trajetória trôpega de escritores como Faulkner e Fitzgerald pelos estúdios, a elegância maliciosa dos filmes de Lubitsch, a tumultuosa passagem de Orson Welles pelo Rio e Fortaleza e uma infinidade de outros assuntos, sempre tratados com o desembaraço, as associações desconcertantes, a erudição vertiginosa e o fino humor do escritor e jornalista.

É um livro tão estimulante que faz pensar em outros casamentos felizes entre o cinema e as letras que podem fazer as vezes de conversas calorosas nestes tempos de isolamento e incerteza. Não me refiro aos volumes sisudos de teoria ou história do cinema, que podem ser muito bons e essenciais, mas não ajudam numa hora dessas (talvez apenas como soníferos), e sim a textos mais informais, escritos em primeira pessoa, “em linguagem de dia de semana”, como diria Guimarães Rosa. Aqueles que chegam à paisana e vão entrando sem avisar, nos tratando de modo coloquial, como se fossem velhos amigos.

Penso, por exemplo, em algumas autobiografias. A minha preferida é a de Luís Buñuel, escrita com a assessoria de Jean-Claude Carrière, seu parceiro em tantos roteiros memoráveis. Há duas edições brasileiras, uma da Nova Fronteira (tradução de Rita Braga) e outra da Cosac Naify (tradução de André Telles). Em ambas se preserva intacto o humor iconoclasta do diretor, responsável por passagens saborosas, como a da primeira sessão de Um cão andaluz em Paris, em que Buñuel encheu os bolsos de pedras para reagir ao público caso o filme fosse vaiado. Ou da última boutade que imaginou: no leito de morte, cercado por seus amigos mais ferrenhamente ateus e anticlericais, mandaria chamar um padre, confessaria seus pecados, viraria de lado e expiraria.

 

Astros e anônimos

Um livro aberto (L&PM, tradução de Milton Persson), de John Huston, é igualmente arrebatador, contando histórias impagáveis de personagens famosos e anônimos, de astros de Hollywood a jóqueis e pugilistas amadores (como o próprio Huston). Numa passagem inesquecível, ele relembra suas conversas com Jean-Paul Sartre (ou melhor, monólogos do filósofo) durante a preparação do filme Freud, além da alma. O cineasta encomendou um roteiro a Sartre e este apareceu com um calhamaço de trezentas páginas. Huston pediu-lhe que o reduzisse e o filósofo voltou com outro com o dobro do tamanho. O catatau, do qual se aproveitou pouca coisa no filme, acabou sendo publicado em livro também (Nova Fronteira, tradução de Jorge Laclete).

Para além das controvérsias e acusações que pesam sobre seu autor, a autobiografia Roman, de Roman Polanski (Record, tradução de Thereza Cesario Alvim), é um livro de uma riqueza extraordinária. A trajetória do autor não é nem um pouco banal. Nascido em Paris em 1933, de pais judeus poloneses, sua família teve a infeliz ideia de retornar a Cracóvia em 1939, justamente quando Hitler lançava suas patas sobre a Polônia. Resultado: os pais foram parar num campo de concentração e o pequeno Roman foi criado por uma família católica, escondendo a duras penas sua origem e seu pênis circuncidado. Mas no livro essa e outras desgraças são narradas com a verve e o humor (ocasionalmente negro) do grande cineasta que o mundo conhece. Uma exceção, claro, é a morte escabrosa de Sharon Tate: ali não havia como achar qualquer vestígio de graça.

Alguns livros de história do cinema, ou de alguns de seus aspectos, podem eventualmente ascender à categoria de conversas prazerosas. É o caso, por exemplo, de A cidade das redes – Hollywood nos anos 40, de Otto Friedrich (Companhia das Letras, tradução de Ângela Melim), que narra os mais inesperados encontros e desencontros entre grandes artistas do século vinte (de Stravinsky a Thomas Mann, de Brecht a Salvador Dali) e a indústria do cinema na era dos grandes estúdios. É uma espécie de “mil e uma noites” de Hollywood, engatando uma história na outra de modo irresistível.

Vale por um ano inteiro de conversas inteligentes o volume Uma viagem pessoal pelo cinema americano (Cosac Naify, tradução minha), versão impressa do monumental documentário homônimo de Martin Scorsese, em parceria com Michael Henry Wilson. Há ali comentários iluminadores sobre cenas de filmes célebres e obscuros, sempre revelando infinitas maneiras que o cinema tem de nos envolver e encantar.

Martin Scorsese. Foto de Siebbi/Wikimedia Commons

 

Algumas coletâneas de críticas têm também o sabor de diálogos informais ao pé do fogo ou no balcão de bar: os dois volumes de Crítica de cinema no Suplemento Literário (Paz e Terra), de Paulo Emilio Salles Gomes, nosso crítico maior, é o exemplo que me vem à mente. Na minha cabeceira esteve durante décadas também Os filmes de minha vida (Nova Fronteira, tradução de Vera Adami), de François Truffaut, grande cineasta e crítico inspirado. Outro que folheio sempre, com renovado prazer, é o caudaloso Cinema de boca em boca (Imprensa Oficial), de Inácio Araujo, amigo querido de quem eu gosto às vezes de discordar.

 

Cineastas entrevistadores

E há as conversas propriamente ditas, isto é, os livros de entrevistas. O mais célebre, com justiça, é Hitchcock/Truffaut (Companhia das Letras, tradução de Rosa Freire d’Aguiar), em que os dois grandes cineastas conversam longamente sobre cada um dos 53 filmes do mestre britânico. A exemplo de Truffaut, outro excelente cineasta-crítico-entrevistador é Peter Bogdanovich, que reuniu dezesseis de suas conversas com diretores como Fritz Lang, Howard Hawks e Raoul Walsh (além do próprio Hitchcock) no alentado Afinal, quem faz os filmes (Companhia das Letras, tradução de Henrique W. Leão). Bogdanovich é responsável também por Este é Orson Welles (Globo, tradução de Beth Vieira), transcrição de longas e saborosas conversas com o diretor de Cidadão Kane.

Imagem do livro Hitchcock/Truffaut (Companhia das Letras, tradução de Rosa Freire d’Aguiar)

 

“Mas para que serve um livro sem ilustrações e diálogos?”, pergunta a Alice de Lewis Carroll. Todos os livros citados estão repletos de diálogos e quase todos têm imagens, mas em proporção menor. Para compensar esse desequilíbrio, nada melhor que um livro de fotos de cinema. E nesse departamento a obra insuperável é Magnum cinema – Histórias de cinema pelos fotógrafos da Magnum (Nova Fronteira, tradução de Irene Cubric), em que gente do quilate de Cartier-Bresson e Robert Capa flagra momentos de trabalho e de lazer de cineastas como Welles, Renoir e Glauber Rocha e astros como Marilyn Monroe, James Dean e Sophia Loren, alinhavados pelo texto elegante e poético de Alain Bergala.

Em suma, para quem está carente de boa companhia nestes dias esquisitos, aí estão algumas dicas.