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Dois lados do Pacífico

13 de março de 2019

A Sessão Mutual Films deste mês traz duas grandes obras do cinema pop/experimental, realizadas em Tóquio e em Los Angeles – A marca do assassino (1967), do renomado diretor japonês Seijun Suzuki (1923-2017), e 66 (2015), do cineasta e professor norte-americano Lewis Klahr (1956). A dobradinha foi criada a partir de uma conversa com Klahr, que comenta a relação entre os dois filmes no texto abaixo. A sessão é dedicada à memória de Suzuki e também à de Jonathan Schwartz, cineasta experimental e amigo de Klahr que faleceu em outubro do ano passado. (Aaron Cutler/Mariana Shellard)

Eu vi os filmes de Seijun Suzuki pela primeira vez no fim da década de 1980, durante a mostra Dark Side of the Sun [Lado Escuro do Sol], realizada no Collective for Living Cinema, em Nova York, com curadoria do icônico músico experimental John Zorn. Os programas foram criados a partir da extensiva coleção em VHS de filmes japoneses do músico (na época, Zorn morava parte do ano no Japão), inclusive vários filmes de Suzuki, entre eles A marca do assassino. As fitas VHS não tinham legendas em inglês e, como eu não falo japonês, não conseguia acompanhar os diálogos, tinha apenas uma vaga ideia das histórias. Foi muito estimulante assistir a filmes narrativos dessa forma onírica e não linear. Eu fiquei particularmente cativado pelo ritmo frenético, pelo forte estilo visual e pelas referências de gênero de A marca do assassino. A energia implacável e crua do filme me convenceu de que havia me deparado com uma divindade de pura visão pop! A marca do assassino tornou-se um favorito imediato, e uma referência crucial para mim.

Muitos anos depois, assisti A marca do assassino em uma sala de cinema, com legendas em inglês. Para minha surpresa, a maior clareza narrativa não diminuiu em nada a intensidade onírica da obra. Na verdade, a capacidade de acompanhar os detalhes das intrigas criminais deixou claro para mim o uso da descontinuidade, revelando-se uma obra alucinante, de total surrealismo.

Foi essa sensação de surrealismo que me levou a sugerir uma sessão dupla de A marca do assassino e meu longa-metragem 66. A descontinuidade também é central em 66, e uma característica importante em todos os meus filmes de colagem. Na obra de Suzuki, reconheci um companheiro de viagem que, como eu, valorizava a sensação emocionante da surpresa criada por justaposições chocantes.

Para citar um exemplo simples e claro: em uma cena inicial de A marca do assassino, o assassino de aluguel Goro Hanada (interpretado por Jo Shishido, protagonista frequente nos filmes de Suzuki) está protegendo um cliente de outros assassinos dentro de um carro. Hanada dispara uma bala através do para-brisas para matar seus adversários, mas o vidro não quebra, nem mostra nenhum sinal ou impacto da bala. A imagem está, efetivamente e simultaneamente, construindo e destruindo sua própria ilusão fictícia.

 

Cena de "66", de Lewis Klahr

 

Em 66, esse tipo de ilusionismo paradoxal serve como base para minha colagem elíptica e associativa. Por exemplo, no capítulo “A filha de Erígone”, a protagonista loira é um remendo de várias fotografias de loiras que cortei das páginas de fotorromances portugueses das décadas de 1960 e 1970 (encontrei as fotos na revista portuguesa Crônica, que comprei em uma visita a Lisboa durante o festival IndieLisboa em 2010). Estou pedindo ao espectador a compreensão de que as fotos se referem à mesma personagem – o elo sendo seu cabelo loiro –, mesmo que as “atrizes” sejam diferentes. O ilusionismo paradoxal coloca o público tanto dentro quanto fora do universo fictício de “A filha de Erígone”. Estou empolgado com o que este estado de engajamento parcial pode comunicar sobre a vida e sobre as formas de narrativa.

Além disso, A marca do assassino e 66 compartilham o uso de gêneros cinematográficos arquetípicos como pontos de partida que permitem, e até catalisam, mergulhos em cinepoesia. Em 66, particularmente, a história de crime é um dos múltiplos gêneros do cinema (tanto experimental quanto narrativo) que utilizo. A sequência de 12 “capítulos” (cada um sendo um curta-metragem individual) se desenvolve para formar uma obra contínua e unificada ao longo de 90 minutos. Alguns dos gêneros que 66 evoca incluem melodrama, em “Impressão labial (Vênus)”, flicker films, em “Diário de Saturno”, narrativa elíptica, em “Icor”, ficção científica, em “Letes”, e natureza-morta, em “Ambrosia”. Confie em mim – o todo é maior que a soma de suas partes.

Um outro ponto de contato e contraste importante: A marca do assassino foi realizado durante a extensa experimentação estética que caracterizou o cinema de entretenimento na década de 1960, enquanto 66 é um olhar para trás de um cineasta-artista para essa mesma década (a de minha infância) a partir do presente. Embora eu esteja otimista sobre o diálogo inesperado e surpreendente entre os dois filmes, não tenho certeza absoluta se A marca do assassino e 66 irão funcionar juntos. No entanto, se a dobradinha for um pouco absurda, estaria completamente de acordo com o espírito de risco e a quebra de convenções que envolve os dois filmes.