Se o cinema é “a música da luz”, como definiu Abel Gance ainda na época dos filmes mudos, um compositor como Ennio Morricone (1928-2020) nos faz pensar no inverso, isto é, na luz que a música pode trazer – e frequentemente traz – ao cinema. Esse artista fabuloso é protagonista, assunto e condutor do documentário Ennio, o maestro, de Giuseppe Tornatore, que entra em cartaz nos cinemas nesta quinta (29/9).
Os números são espantosos: ao longo de seis décadas, Morricone compôs a trilha de mais de quinhentos filmes. Ganhou um Oscar aos 87 anos, por Os oito odiados, de Tarantino, nove anos depois de ter recebido uma estatueta honorária, espécie de “mea culpa” da academia pelas várias ocasiões em que ele mereceu e não levou.
Mas, mais do que a quantidade, o que impressiona é o alcance múltiplo de sua obra. O primeiro grande mérito do documentário de Tornatore é mostrar esse vasto e vário universo, em preciosas imagens de arquivo e em depoimentos vivazes, além, é claro, de trechos muito bem escolhidos de filmes musicados pelo compositor.
Se ficasse só nisso, seria um bom documentário hagiográfico de rotina, desses que vemos a todo momento nos canais pagos de TV. Mas o trunfo maior de Ennio é contar com o próprio músico como guia, comentando com humor, emoção e uma memória prodigiosa cada momento de sua longa carreira.
Popular e de vanguarda
Ganham destaque então aspectos menos conhecidos da produção de Morricone, como os arranjos que fez para artistas da era de ouro da canção romântica italiana, como Gino Paoli, Gianni Morandi, Mina, Miranda Martino, etc. Imagens deliciosas de shows e clipes desses artistas se misturam com bem-humoradas lembranças dos próprios a respeito dos bastidores.
Mais surpreendente ainda é conhecer a participação do compositor, nos anos 1950, num grupo de vanguarda que, inspirado por John Cage, fazia música com objetos como martelos, serras, gavetas e máquinas de escrever. Hermeto Pascoal se deliciaria.
No início dos anos 1960, Morricone se dividia entre a música de concerto, os arranjos para discos da RCA e as primeiras trilhas para o cinema, atividade que dali em diante o absorveria mais e mais, sobretudo depois que sua parceria com Sergio Leone em westerns memoráveis como Por um punhado de dólares (1964) e Três homens em conflito (1966) o tornou conhecido internacionalmente.
O documentário é enriquecido por momentos luminosos da dupla Morricone-Leone, como a esplêndida abertura de Era uma vez no Oeste (1968), com vários minutos de música feita só de ruídos de cena, ou as cenas de Era uma vez na América (1984) filmadas sob a trilha já composta, para os atores “entrarem no clima”, música e filme fluindo juntos. Ou ainda a explicação do compositor para as célebres primeiras notas da trilha de Três homens em conflito como tendo sido inspiradas no uivo dos coiotes.
O resto é história: Morricone trabalhou com cineastas tão díspares quanto Pontecorvo e De Palma, Bertolucci e Malick, Pasolini e Argento, Elio Petri e Liliana Cavani, Samuel Fuller e Pedro Almodóvar, John Carpenter e os irmãos Taviani.
Tornatore, cineasta dado a excessos sentimentais em seus próprios filmes (dos quais o mais famoso é Cinema Paradiso), encontra aqui um vasto material para nos levar às lágrimas, mas sem perder a espinha dorsal dramática de sua narrativa, que é a relação pessoal de Morricone com a música e, por tabela, uma reflexão sobre o estatuto da música de cinema no contexto da música em geral.
Conflito interior
É uma história que já começa de modo inusual. Na infância e adolescência, Ennio queria ser médico, mas o pai, trompetista, queria que o filho também fosse músico. É assim, meio a contragosto, mas com afinco, que o menino empunha o trompete e entra no mundo das partituras, que passaria a constituir sua linguagem essencial.
Formado na Accademia Nazionale di Santa Cecilia, uma das escolas de música mais antigas do planeta, Morricone viveu até a maturidade um conflito interior entre a aspiração à “música séria” e o trabalho com a canção popular e as trilhas de filmes. Uma das partes mais comoventes de Ennio são os depoimentos de velhos músicos eruditos de sua geração, sobre como eles próprios demoraram a reconhecer o gênio do amigo que optara pelo cinema e como este sofria por isso.
No outro extremo, prestam tributo ao maestro artistas das mais diversas tendências influenciados por ele: John Williams, Quincy Jones, Pat Metheny, o “herdeiro” Nicola Piovani e até Bruce Springsteen e Joan Baez.
Tudo somado, além de homenagem a um criador singular, Ennio vale pela discussão, ou antes, pela celebração da música de cinema como uma das grandes artes do nosso tempo. Não se esqueça de levar o lenço.