Eu, capitão, de Matteo Garrone, que estreia nesta quinta-feira em cinemas brasileiros, é ao mesmo tempo um “romance de formação” e uma tentativa de retratar em chave ficcional a tragédia dos refugiados africanos que buscam de todas as maneiras chegar à Europa, essa miragem de conforto e fartura.
O protagonista é Seydou (Seydou Sarr), garoto senegalês de 16 anos que parte de Dakar com o primo Moussa (Moustapha Fall) para tentar chegar a Trípoli, na Líbia, e dali tomar um barco que fará a travessia do Mediterrâneo até a Itália. O sonho dos dois é ser astros da música pop, “dar autógrafos para os brancos”. Se vão conseguir ou não é outra história. O que importa aqui é o caminho.
E que caminho! Os dois terão que cruzar três países pelo deserto do Sahara, enfrentando não apenas a inclemência do clima e do ambiente, mas também a brutalidade e a corrupção de todas – absolutamente todas – as forças armadas com que se deparam no trajeto: polícias, exércitos, milícias, salteadores...
Círculos do inferno
Matteo Garrone (de Gomorra, Reality e Dogman) conta essa odisseia como quem descreve uma descida ao inferno, com seus sucessivos círculos, um mais tenebroso que o outro. Seu eixo dramático é o contraste entre a dureza circundante e a pureza do coração de Seydou, submetida a sucessivas provas.
Poderia ser uma aventura infanto-juvenil edificante se não fosse pela insistência nas cenas explícitas de violência e tortura. Mas Garrone, como o mexicano Alejandro Iñárritu, o argentino Pablo Trapero e o brasileiro Sergio Bianchi, não é chegado a sutilezas e, sempre que possível, carrega a mão nas tintas.
Do ponto de vista da construção formal, o filme combina com eficiência os planos fechados nos protagonistas, com seus dramas pessoais; os planos médios mostrando sua interação com os outros refugiados e seus algozes; e, por fim, os grandes planos gerais que revelam a imensidão bela e assustadora do deserto. O íntimo, o histórico-social e o cósmico.
À margem dessa narrativa dura, linear, emerge ocasionalmente um realismo fantástico suscitado por sonhos de Seydou. O mais marcante deles é o de uma refugiada moribunda que escapa voando de sua situação miserável.
Cinema transnacional
Chama a atenção o fato de um filme desse teor (quase escrevi terror) sobre o drama dos refugiados africanos ter sido feito por um italiano, isto é, por um cidadão de um país que recebe – e no mais das vezes rejeita ou discrimina – esses mesmos refugiados. Nada contra. É legítimo e louvável que um artista europeu (ou americano, ou asiático) se preocupe com o tema a ponto de abordá-lo em sua obra. Mas sempre fica a sensação de algo menos íntegro e contundente do que seria uma abordagem feita “de dentro”, por vozes d’África.
Por outro lado, é um sinal claro de uma internacionalização – ou transnacionalização – radical da produção cinematográfica. Eu, capitão, que ganhou os prêmios de direção e de ator jovem (para Seydou Sarr) no festival de Veneza, concorre ao Oscar de filme estrangeiro pela Itália, embora se passe todo na África, com atores africanos, e seja falado em francês, em árabe e em línguas nativas do Senegal, do Mali, de Níger, etc. Io capitano, o título original, é uma das pouquíssimas frases em italiano ditas no filme.
Do mesmo modo, Dias perfeitos concorre pelo Japão embora tenha sido dirigido por um alemão, e A sociedade da neve disputa pela Espanha mesmo sendo ambientado nos Andes e tendo como personagens principais um grupo de uruguaios. À parte as injunções econômicas que envolvem hoje a produção audiovisual, pode-se ver essa internacionalização desenfreada do audiovisual com um viés positivo: a humanidade é uma só; o drama de um é o drama de todos.