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Com quantas imagens se faz um país

05 de março de 2020

Fotografação está em cartaz nos cinemas do IMS Rio e do IMS Paulista, e terá sessão especial seguida de debate no Rio de Janeiro em 11/3, com participação de Lauro Escorel, Milton Guran e Sabrina Moura.

Duas estreias notáveis marcam a semana, ambas brasileiras: o documentário Fotografação, de Lauro Escorel, e o misto de drama e policial Fim de festa, de Hilton Lacerda. Comecemos pelo primeiro.

Diretor de fotografia de mais de cinquenta filmes – entre eles clássicos como São Bernardo, Toda nudez será castigada e Ironweed – e realizador bissexto, Escorel parte da palavra cunhada por Mário de Andrade (“fotografação”) para rastrear a apaixonante história do registro da paisagem física e humana do Brasil pelas lentes dos fotógrafos, desde o pioneiro Padre Louis Compte, em 1840, até os dias de hoje.

 

 

Lançando mão de um extraordinário material de arquivo, entremeado com depoimentos esclarecedores de experts como o pesquisador Boris Kossoy, o antropólogo Milton Guran e a fotógrafa Maureen Bisilliat, o próprio Escorel narra em primeira pessoa essa bela saga, a todo momento explicitando sua relação particular com a tradição, as descobertas, o aprendizado. E refletindo sobre as novas condições do ato de fotografar no mundo da imagem digital e das redes.

Impossível resumir aqui toda a riqueza de temas e personagens abordados no filme. Mas, dentro dessa variedade, seu eixo nunca se perde: trata-se de mostrar como a aventura dos fotógrafos foi análoga e paralela ao empenho de escritores, antropólogos e cineastas em conhecer e registrar o país e suas gentes. Nesse quadro, duas figuras emblemáticas são Dom Pedro II, praticante, incentivador e mecenas da fotografia, e Mário de Andrade, que criou nos anos 1930 o serviço de documentação fotográfica do patrimônio histórico e que foi, ele próprio, um fotógrafo desbravador em suas expedições como “turista aprendiz”.

 

Estrangeiros, índios, negros

Alguns assuntos se impõem naturalmente, como o papel de fotógrafos de origem estrangeira no registro de nossas paisagens e de nossas culturas: os franceses Pierre Verger, Marcel Gautherot e Jean Manzon, a inglesa Maureen Bisilliat, a suíça Hildegard Rosenthal, o húngaro Thomaz Farkas, etc. Todos eles abrasileirados até a medula, apaixonados pela luz dos trópicos e seus habitantes.

O registro da imagem dos indígenas (começando com o Major Reis, que trabalhou para Rondon) e a documentação da cultura afro-brasileira em suas diferentes manifestações ocupam boa parte do filme, bem como o papel da revista O Cruzeiro na criação de um novo conceito de fotojornalismo.

Uma questão fascinante, que emerge aqui e ali no documentário, é a influência de determinados fotógrafos sobre o trabalho do próprio Escorel ao compor a imagem de determinados filmes. Assim, ficamos sabendo, por exemplo, que a composição dos planos de O Xangô de Baker Street (Miguel Faria Jr., 2001) inspirou-se nos enquadramentos de Marc Ferrez, que documentou o Rio de Janeiro do final do século dezenove em suas magníficas vistas panorâmicas. Ou que o modo como Maureen Bisilliat captou as cores dos índios do Xingu e suas pinturas corporais serviu de referência para a fotografia de Brincando nos campos do Senhor (Hector Babenco, 1991).

Perpassa todo o filme uma reflexão acerca do olhar (sobre o outro, sobre o ambiente, sobre si mesmo) e suas transformações ao longo da história da sociedade e da cultura. É, enfim, uma inteligente e calorosa conversa ilustrada, que contagia o espectador com a paixão de Escorel pela fotografia e a vontade de aprender sempre mais. Vale por um curso.

 

Fim de festa

O novo filme de Hilton Lacerda, que dirigiu anteriormente o longa Tatuagem (2013) e escreveu o roteiro de mais de vinte filmes de diretores como Claudio Assis, Lírio Ferreira e Matheus Nachtergaele, começa numa Quarta-feira de Cinzas.

 

https://www.youtube.com/watch?v=Vb4ir68M7EI

 

Ao voltar antecipadamente de suas folgas, o investigador de polícia Breno (Irandhir Santos) encontra seu quarto ocupado por jovens amigos de seu filho Breninho (Gustavo Patriota) e dorme no sofá da sala. Mas só somos apresentados à situação quando Breno é despertado pela sobrinha Penha (Amanda Beça), que aparece nua na sala.

O final abrupto das férias de Breno se deveu a um chamado para investigar a morte de uma turista francesa durante o Carnaval na cidade. O filme se desenvolve então em duas linhas paralelas – a investigação policial e a crônica dessa pequena comunidade libertária formada por Breninho, Penha e amigos. De início ligadas tenuamente pela figura do investigador, essas duas linhas acabarão por se fundir de modo belo e surpreendente.

 

Cineasta do corpo

Se nessa construção narrativa Hilton Lacerda atesta sua competência como roteirista, na direção de atores e na decupagem das cenas se evidencia sua inclinação para um cinema físico, em que as emoções e os afetos se expressam sobretudo pela linguagem do corpo. É um cineasta da pele, dos pelos, dos poros, de uma sensualidade presente mesmo nas cenas não-eróticas. Alguns dos momentos mais tocantes do filme são justamente aqueles em que personagens trocam carícias isentas de intenção sexual: entre Breno e o filho, entre Breno e a ex-cunhada (Hermila Guedes).

Em certo momento, Breninho pergunta ao pai o que ele ainda sente pela sua mãe, a mulher que o abandonou (ao que tudo indica por ter sofrido algum tipo de violência). “Eu sinto falta”, responde Breno. É a falta, a carência, que caracteriza esse personagem e que talvez seja o que o impulsiona a elucidar crimes. Apesar do título, não é um filme deprimente ou pessimista. Como em Almodóvar, há nele uma aposta na força do afeto e do desejo contra tudo o que violenta, apequena e entristece a vida humana.

Faltou dizer duas coisas: que Fim de festa venceu o Festival do Rio do ano passado, e que Irandhir Santos é um ator extraordinário. Como se você não soubesse.