The Beatles: Get Back, de Peter Jackson e Michael Lindsay-Hogg, pode não ser o melhor documentário do ano, mas é o que dá mais pano para manga, não só no campo da música, da cultura pop e dos costumes, mas também do próprio cinema. Disponível na plataforma de streaming Disney Plus, é uma preciosidade com quase oito horas de duração, divididas em três partes.
Como quase todo mundo já sabe, o documentário/minissérie foi todo feito a partir de quase 60 horas de material inédito filmado em película nos bastidores do “projeto Let It Be”, de 1969, que previa inicialmente a gravação de um álbum, um show ao vivo e um longa-metragem. O álbum foi o último lançado pelos Beatles (embora Abbey Road tenha sido gravado alguns meses depois), o longa foi lançado nos cinemas em 1970 e o show ao vivo foi realizado sem aviso prévio na cobertura do prédio da gravadora Apple, em Londres.
O que se vê ali? Ensaios, conversas, esboços de composições, cafezinhos, brincadeiras, cigarros, muitos cigarros. E o que explica que, meio século depois, esse inventário de miudezas ainda interesse, divirta e comova milhões de espectadores em todo o planeta? A meu ver, a conjugação de dois fatores.
Em primeiro lugar, a aura mítica adquirida pelos Beatles desde meados dos anos 1960 e que persiste ainda hoje, até mesmo, espantosamente, entre jovens nascidos muito depois da dissolução da banda. Em vista disso, qualquer detalhe relacionado ao dia a dia do grupo ganha ares ao mesmo tempo de revelação e de aproximação íntima aos ídolos.
Reality show
Além disso, como bem notou o crítico Mauricio Stycer em sua coluna no UOL, o público atual se habituou ao formato dos reality shows, em que se espia a convivência de um punhado de pessoas num ambiente fechado, mesmo em suas ações mais banais e em suas horas mais mortas.
Juntando as duas coisas, poderíamos dizer que, para boa parte do público mundial, as ações de um beatle nunca são banais, e que suas horas nunca são inteiramente mortas. Daí o sucesso de Get Back.
Do ponto de vista do interesse histórico-cultural do material coletado na época por Michael Lindsay-Hogg e organizado cinco décadas depois por Peter Jackson, temos: o processo de criação de algumas canções célebres, os pequenos e grandes atritos entre membros do grupo, detalhes do funcionamento de um estúdio de gravação, as reações dos quatro Beatles às notícias da época e à cobertura que eles próprios recebiam da imprensa, etc.
Pode parecer fácil dar forma a esse rico magma (preservado, aliás, com uma qualidade estupenda de som e imagem), mas o prodígio de Peter Jackson consistiu em conferir fluência e frescor ao encadeamento das cenas, equilibrando habilmente o relaxamento e a tensão, o drama e o humor.
Dois movimentos opostos e complementares parecem dar vida a Get Back. Um deles, que poderíamos chamar de centrífugo, aponta para a separação, a desagregação, o desmembramento: George Harrison anunciando sua saída da banda, John Lennon resistindo às instruções de Paul McCartney para certos arranjos, George ironizando a postura mandona dos dois, etc.
Faz parte desse movimento “para fora” o surgimento de canções que seriam gravadas por ex-Beatles em seus álbuns-solo pós-separação: “Another Day” de Paul, “All Things Must Pass” de George, “Jealous Guy” (com outra letra) de John... Igualmente perturbadora, à luz do que aconteceria depois, é a presença algo indecifrável, esfíngica, de Yoko Ono (muito mais que a da mais prosaica Linda Eastman McCartney).
Futuro do pretérito
Mas, em constante tensão com essa tendência à desagregação, há os instantes de comunhão e cumplicidade, quando os quatro músicos parecem voltar momentaneamente à amizade da adolescência em Liverpool, e então a música que eles tocam soa como uma coisa única, indivisível e sólida como um diamante. À afinação musical corresponde a troca de olhares, a alegria da convivência. Talvez não seja exagerado usar a palavra amor. Quando isso acontece, é muito bonito de se ver.
Contribuindo para o clima de harmonia temos a elegância serena de George Martin, a alegria contagiante de Billy Preston, a camaradagem bem-humorada de Ringo Starr.
A qualidade mais essencial que emerge de Get Back é a faculdade que o cinema tem de captar o tempo em seu movimento, em seu devir. Para o espectador que sabe o que veio antes e o que viria depois daquelas imagens e sons, o tempo verbal predominante talvez seja o futuro do pretérito: Lennon trocaria os Beatles por Yoko, McCartney criaria os Wings com Linda, Harrison mergulharia na experiência mística, Ringo se aventuraria pelo jazz e pelo blues, Lennon seria assassinado em 1980, Harrison morreria de câncer em 2001. Como escreveu Althusser, o futuro dura muito tempo.
Há também a tentação do condicional: se a separação não tivesse ocorrido e Billy Preston se efetivasse como “o quinto Beatle”, talvez o som da banda se aproximasse da black music, tomando outro rumo. (Há um momento em que Paul McCartney, salvo engano, diz ao tecladista algo como: “Um branquelo do norte da Inglaterra nunca teria esse seu balanço soul”.) Se George Harrison tivesse consumado naquele momento sua saída do grupo e Eric Clapton fosse chamado em seu lugar para as gravações (como chegou a ser cogitado), isso daria uma sobrevida ao grupo ou seria sua pá de cal?
Eram dias, em suma, de improviso e incerteza, de terreno movediço e horizontes em aberto. E o cinema tem o sortilégio de nos levar para esse lugar onde todos os futuros parecem possíveis.