Cesse tudo o que a antiga musa canta: morreu Jean-Luc Godard, o homem que destruiu e reconstruiu o cinema um punhado de vezes ao longo dos últimos setenta anos. Sua importância como renovador radical de sua arte tem sido comparada à de Picasso na pintura e à de Joyce na literatura. Não vou chover no molhado, mas apenas repisar o óbvio: é preciso ver e rever os filmes de Godard, ler e reler seus escritos.
Cada cinéfilo tem uma relação particular com sua obra e sua figura, que aliás, por conta de sua radicalidade sem concessões, nunca foi unanimidade. Grandes cineastas, como Ingmar Bergman, Werner Herzog e Roman Polanski, por exemplo, consideravam-no supervalorizado, e por pouco não o acusaram de ser um engodo. Nos últimos anos, críticas e intelectuais feministas têm questionado o tratamento dispensado por Godard às mulheres, tanto nas telas como na vida. Arrogante, egocêntrico, intratável, incompreensível são alguns dos adjetivos que aparecem ligados a ele com frequência.
Força prodigiosa
Entre os críticos, excetuando os que se entregaram a um culto incondicional, beirando a adoração cega, as relações sempre foram cambiantes, de acordo com a sensibilidade e o gosto de cada um. No meu caso, variaram do encantamento à irritação, da admiração ao fastio. Inúmeras vezes Godard não me tocou, em outras (talvez as mesmas) fui eu que não o alcancei.
O fato é que a primeira fase de sua obra é de uma força criativa prodigiosa. De Acossado (1960) a Week-end (1967), enfileirou pelo menos mais meia dúzia de títulos incontornáveis do cinema moderno: Viver a vida, O desprezo, Alphaville, Pierrot le fou, Made in USA, A chinesa. Vários deles estão disponíveis em DVD e nos canais de streaming.
O desprezo (1963) está inteiro de graça no YouTube, numa cópia bastante boa e com legendas em português. Pode ser uma boa iniciação à poética de Godard e a sua concepção do cinema como um eterno campo de batalha entre a arte e a indústria.
Depois dessa primeira fase, em que rompeu todas as regras da narrativa clássica para criar novas formas de ler o mundo, rearticulando imagem, palavra e música, Godard se afastou do circuito comercial para mergulhar num cinema militante, de ação direta e produção coletiva, do qual pouca coisa chegou até nós.
A volta às telas do mundo se deu com Tudo vai bem (1972), que usava ironicamente duas estrelas mundiais – Jane Fonda e Yves Montand – para construir um vigoroso ensaio político anticapitalista.
Documento, ficção, poesia
“Ensaio” talvez seja o termo que unifica toda a produção posterior do cineasta, mesclando sempre documentário, ficção, poesia e reflexão em doses variadas para falar do mundo, com suas maravilhas e suas dores, de Mozart a Sarajevo, dos genocídios à internet, da imigração em massa ao desequilíbrio ecológico. Alguns pontos luminosos dessa busca ao mesmo tempo estética, ética e política são, já no século 21, Elogio ao amor, Filme socialismo, Adeus à linguagem e Imagem e palavra, filme-montagem de 2018 que pode ser visto como seu esplêndido testamento. A partir de sexta, 16 de setembro, a plataforma gratuita do Sesc exibe os dois últimos e também Masculino-feminino, de 1965.
Para conhecer melhor as relações controversas e frequentemente espinhosas de Godard com seu meio de expressão, talvez seja interessante observar sua relação com outros grandes cineastas. Há no YouTube, por exemplo, uma conversa sua de meados dos anos 1960 com Fritz Lang, que havia atuado no seu O desprezo. Aqui vai um trecho muito significativo, falado em francês com legendas em inglês, sobre as diferenças de método entre os dois:
Mais complicada e dolorosa é a relação de décadas com François Truffaut, seu amigo e camarada de armas nas páginas dos Cahiers du Cinéma e nos tempos heroicos da Nouvelle Vague tornado desafeto a partir dos anos 1970, sobretudo depois que Godard atacou com virulência A noite americana (1973), considerado por ele uma rendição do ex-amigo ao cinema burguês convencional. A história dessa amizade com final infeliz está no belo documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (2010), dirigido por Emmanuel Laurent e escrito por Antoine de Baecque, biógrafo de ambos. Está disponível em DVD da Imovision.
Já a relação com Glauber Rocha, mais ambígua, aparece encenada num trecho célebre do filme O vento do leste, de 1970. Ali, o diretor baiano diz que há dois caminhos para o cinema: o “do desconhecido, da aventura”, e o “do Terceiro Mundo, um cinema perigoso, um cinema da opressão imperialista”. De certa maneira, toda a filmografia de Godard é uma busca de superação dessa falsa dicotomia, tentando combinar a aventura estética pessoal e a resistência política a toda forma de opressão.
Todos ao cinema
Na tentativa de recuperar o público perdido durante a pandemia, quando muita gente se habituou a ver filmes na comodidade do streaming, salas exibidoras de todo o país estão promovendo a partir desta quinta-feira, 15 de setembro, a Semana do Cinema, com ingressos ao preço único de R$ 10. Vale a pena aproveitar a pechincha. Tem muito filme bom em cartaz – e nada se compara à experiência de ser arrebatado por imagens e sons no escurinho da velha e boa sala de cinema. Como dizia Fellini, a televisão, por maior que seja sua tela, não passa de um eletrodoméstico.