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IMPROVISAÇÕES SÔNICAS, IMAGINAÇÃO FUGAZ

14 de maio de 2025

A Sessão INDETERMINAÇÕES: IMPROVISAÇÕES SÔNICAS, IMAGINAÇÃO FUGAZ está em cartaz no cinema do IMS Paulista em maio.

 

Se biografar, documentar, categorizar e classificar as formas de expressão de personalidades e coletividades culturais negras marcam o cinema brasileiro de todos os tempos, como a música preta poderia apresentar uma torção – ou uma quebra – a um conglomerado de imagens e sons que está grafado em nosso imaginário e que acaba por fazer emergir proposições e contraposições acerca da ideia de cinema negro?

Inspirada nas ideias de Arthur Jafa, Fred Moten, Stefano Harley, GG Albuquerque, Denise Ferreira da Silva e Castiel Vitorino Brasileiro, IMPROVISAÇÕES SÔNICAS, IMAGINAÇÃO FUGAZ convoca diferentes matérias fílmicas a fim de perseguir os sons, as musicalidades e as pretitudes sônicas[1], ou seja, os procedimentos formais e inventivos imaginados pelas múltiplas expressões performativas pretas, para repensar o cinema negro brasileiro, os métodos que o circunscrevem e o perturbam e, no limite, a própria noção de raça.

Desde quando começamos a desenhar o programa da plataforma INDETERMINAÇÕES, uma convocação nos persegue. Em “69”, palestra transcrita e publicada no livro Black Popular Culture (Nova York: New Press, 1992), Jafa questiona: “Como fazer com que as imagens pretas vibrem de acordo com certos valores frequenciais que existem na música preta?”. A essa, acrescentamos outra pergunta: como as expressividades musicais e performáticas da cultura negra poderiam reimaginar nossa relação com o cinema negro e brasileiro?

“A performance preta sempre foi a improvisação contínua de uma espécie de lirismo do excedente – invaginação, ruptura, colisão, aumento”, pontua Moten em Na quebra (São Paulo: n-1, 2023) ao refletir sobre as rítmicas e interpretações do jazz estadunidense. No Brasil, a disrupção, o excesso e a experimentação encontram ecos do samba ao funk, das rodas de terreiros aos círculos de oração, do congado ao frevo, ritmos, danças e movimentos que atravessam esta sessão e comunicam sobre a construção da cultura sonora do país. São ainda capazes de inscrever o inconformismo e a fugacidade presentes nas vidas marcadas pelo trauma colonial e pela rebeldia.

Cena de Memória de Goitacá, de Eloísa de Mattos e Paulo Sérgio Pestana

Imagens de arquivo, gravações de desktop, glitches de internet, matéria de TV, peça sonora e filme-ensaio compõem o percurso fílmico e fonográfico de IMPROVISAÇÕES SÔNICAS, IMAGINAÇÃO FUGAZ. O programa busca desafiar as formas convencionais de apreensão e significação em torno do filme e das imagens pretas, estabelecendo contato e fricção com as multiplicidades sônicas das criações e formas de ver/ouvir/sentir o mundo a partir das experiências e radicalidades pretas. São imagens que evocam coletividades, fontes de desejo e pulsão de vida, a despeito do país, do fim, da raça.
Mandacura (biarritzz, 2016) dispara o tom e as frequências da sessão, em sua persistência nas formas e deformações das mãos. O exercício de montagem, que abusa de gif, glitch e imagens de baixa resolução, reescreve conexões e deslocamentos em torno da “mão que rege o mundo”. Em Memória Goitacá (Eloísa de Mattos e Paulo Sérgio Pestana, 1976), voltamos à tradição documental brasileira. O retrato de habitantes do litoral de Atafona, no Rio de Janeiro, apresenta relações entre trabalho, performance e comunidade, em que brincadeiras, cantigas e folguedos revelam que a pureza não é uma opção[2]. Uma matéria da TV Viva de 1989 apresenta o afoxé pernambucano Alafin Oyó, que dá nome à obra. O registro não se furta em trazer, para seus quadros, a experimentação sonora do coletivo que vive entre a luta e a festa. Na contramão, “Canto II” (2015), faixa do disco Anganga (Juçara Marçal, Cadu Tenório, QTV Selo, 2015), nos faz encarar o ruído e a profundeza dos lamentos de um canto de trabalho.

Ao fim do nosso baile, o díptico composto por Copacabana (Flavio Frederico, 1999) e Nada haver (Juliano Gomes, 2022) cria uma inversão. Enquanto o primeiro investe na explosão cacofônica da virada do fim de ano para se aproximar das alegrias e tristezas que acometem aqueles que buscam esperança na beira da praia, o segundo investe na contenção de um furto discreto de imagens para contar uma história íntima que, sob o grave gótico do funk mineiro, ressoa o rolezinho de uma multidão.

O programa será comentado pelos programadores da Sessão INDETERMINAÇÕES e pelo multiartista, pesquisador e educador Salloma Salomão, e é acompanhado por um ensaio textual da crítica de cinema e pesquisadora Ana Júlia Silvino, que nos convida a pensar num cinema que filma não para a captura, mas para a escuta. A vinheta que apresenta a seleção de filmes deste mês é assinada pela artista visual e cineasta Lia Letícia, uma peça original produzida para a sessão.

 


 

[1] Em diálogo com o pensamento de Michael Boyce Gillespie, o pesquisador e crítico musical GG Albuquerque apresenta a categoria de pretitudes sônicas, que consiste em sairmos “da lógica da representação e da representatividade (que identificaria uma música negra como apenas feita por negros e/ou majoritariamente apreciada por negros) para pensar em métodos criativos, formas artísticas e imaginações estéticas escuras, isto é, modos de fazer que tomam a racialização como uma proposição formal radical capaz de desafiar as concepções musicais da tradição hegemônica branca ocidental e abrir outras possibilidades de relação com o sonoro”. Ver: “Barulhinho do vapo vapo: pensando através do som e das pretitudes sônicas”. Revista música, v. 24, n. 1, jul. 2024, pp. 1-28.

[2] Frase da antropóloga estadunidense Anna Tsing (2022), em O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo (São Paulo: n-1, 2022).