Bons documentários costumam transcender seu foco imediato e lançar luz sobre um contexto histórico-social mais amplo. É o caso de Irmãos de sangue: Muhammad Ali e Malcom X, de Marcus A. Clarke, que acaba de estrear na Netflix. Ao tratar da amizade entre “os dois negros mais livres do século 20” (na definição do intelectual e ativista Cornel West), o filme dá a ver muito da turbulência e dos impasses que atravessaram o movimento negro norte-americano nos anos 1960 e que reverberam até hoje.
Foi uma relação intensa, que durou pouco mais de dois anos. Quando se aproximaram, em 1962, Muhammad Ali, então ainda chamado de Cassius Clay, era um jovem fenômeno do boxe, tendo conquistado aos 18 anos a medalha de ouro nas Olimpíadas de Roma em 1960. Malcolm, por sua vez, era o mais destacado ministro da Nação do Islã, o principal agrupamento político-religioso dos negros norte-americanos na época.
A amizade terminou em 1964, quando Malcolm X rompeu com o líder da Nação do Islã, Elija Muhammad, e o recém-convertido Muhammad Ali escolheu o lado do líder em detrimento do amigo, que até então era seu principal mentor religioso e político.
O rei do mundo
Entre o início e o fim, um evento espetacular: em 25 de fevereiro de 1964, em Miami, a conquista do título mundial dos pesos-pesados por Cassius Clay, então com 22 anos, contra o brutamontes Sonny Liston. Foi depois dessa luta que o jovem pugilista anunciou sua conversão ao Islã e a mudança de nome.
Ainda no ringue, consumada a vitória, Ali vocifera contra os comentaristas e apostadores que tinham alardeado o favoritismo de Liston: “Vocês têm que me engolir. Eu sou o rei do mundo”. As imagens da luta e do desabafo, muito bem preservadas e restauradas, são eletrizantes.
Esse, aliás, é um dos principais trunfos do documentário: a riqueza do material de arquivo. Outro acerto é sua própria construção, pontuada por depoimentos preciosos (das filhas dos retratados, do irmão de Ali, de ativistas políticos e religiosos, etc.) e costurada por trechos da autobiografia de Malcom X.
A fricção entre duas personalidades tão fortes e carismáticas produz centelhas que iluminam uma porção de assuntos apenas aflorados pelo filme: a contraposição entre a defesa dos direitos civis (à maneira de Martin Luther King) e o separatismo radical da Nação do Islã; as relações entre religião e política; o projeto de constituição de uma cultura afro-americana autônoma; o uso ambíguo dos meios de comunicação de massa e da cultura do espetáculo para a afirmação do black power; o caráter legítimo ou espúrio do recurso à violência na luta política etc.
Tempo da indelicadeza
Ao contrário de tantos documentários televisivos que edulcoram (quando não santificam) seus biografados, Malcolm X e Muhammad Ali são mostrados muitas vezes no contrapé, com suas falhas, arestas e contradições dolorosas. Vemos e ouvimos, por exemplo, Malcolm X declarar, logo depois do assassinato de John Kennedy, que ficava contente ao ver as pessoas colherem o que tinham plantado. Como contraponto, dois anos depois, é a vez de Muhammad Ali declarar, sobre o assassinato do ex-amigo: “Todos aqueles que traem o líder Elija Muhammad devem morrer”. Não eram tempos para delicadezas.
Um dos fios puxados pelo documentário que merece desenvolvimento é o que mostra como Muhammad Ali foi absorvido pela cultura mainstream da América e transformado em glória unânime nacional depois de perder a capacidade da fala em decorrência do mal de Parkinson. Calada sua virulência verbal, tornado inofensivo, podia ser mumificado em vida. Já não era um dos negros mais livres do mundo.
Não há nenhuma bossa especial, nenhum rasgo de invenção autoral em Irmãos de sangue, mas apenas a competência básica de coletar e organizar um acervo documental que fala por si. O brilho, a eloquência e o carisma dos biografados se encarregam de manter, ou melhor, de atiçar o interesse do público.
Como costuma acontecer com os bons documentários, ele instiga o espectador a buscar outras obras correlatas e complementares. Um exemplo: em Irmãos de sangue registra-se brevemente o encontro entre Malcolm X, Cassius Clay, o cantor e compositor Sam Cooke e o astro do futebol americano e do cinema Jim Brown, na noite da conquista do título mundial de boxe em 1964. Um filme recente, Uma noite em Miami, de Regina King, desdobra em chave ficcional o que teria acontecido nos bastidores desse encontro, num hotel da cidade. Vale a pena conferir. Está disponível no Amazon Prime.
Idolatrados e segregados
Outro documentário, também disponível na Netflix, que pode enriquecer a leitura dos temas enfeixados em Irmãos de sangue é Miles Davis: inventor do cool, de Stanley Nelson, que trata tanto de música como da afirmação de um artista afro-americano no mundo dos brancos. Também está disponível na Netflix. À sua maneira, Miles foi, como Malcolm X e Muhammad Ali, um negro altivo e atrevido que nunca se conformou com o papel subalterno em que tentaram colocá-lo.
Há paralelos irresistíveis entre a trajetória de Miles Davis e a de Muhammad Ali, evidenciados nos respectivos documentários. Fiquemos com um único caso. Depois de voltar de suas excursões pela Europa, onde encantou a intelectualidade francesa, fez amizade com gente como Cocteau e Picasso e namorou a musa Juliette Gréco, o orgulhoso trompetista foi agredido brutalmente por um segurança e um policial brancos na calçada diante da casa noturna onde ele próprio estava dando um concerto, em Nova York. Não adiantou mostrar o luminoso em que resplandecia seu nome: ali não era lugar “para um preto ficar parado”.
Do mesmo modo, o jovem Cassius Clay, depois de voltar de Roma com a medalha de ouro das Olimpíadas de Verão, foi expulso de um bar de sua cidade, Louisville, Kentucky, porque “aqui não servimos negros”.
E quando se fala de obras complementares nesse campo específico de interesse, nunca é demais recomendar Malcolm X (1992), de Spike Lee, em que Denzel Washington encarna o controverso ativista. Está no Amazon Prime e no Mubi. Também no Mubi há o curta documental Os panteras negras (1968), de Agnès Varda.
Nessa onda bem-vinda de afirmação afro-americana, cabe torcer para que alguma plataforma lance o extraordinário Eu não sou seu negro (2016), de Raoul Peck, centrado na relação do grande escritor negro James Baldwin (1924-87) com o racismo estrutural em seu país.
Os russos estão chegando
Começa nesta quinta-feira, 16 de setembro, a segunda edição do Festival de Cinema Russo no Brasil, acessível de graça no SpcinePlay. São oito longas-metragens realizados nos últimos três anos, abarcando drama, comédia, documentário e animação.
Dos filmes que pude ver, os que me pareceram mais interessantes foram Sheena 667, de Grigoriy Dobrygin, drama cômico sobre o dono de uma pequena oficina que se apaixona por uma garota de programa norte-americana que conheceu num site pornô; Masha, de Anastasiya Palchikova, história de uma menina do interior que sonha em ser cantora de jazz em Moscou, mas vive cercada por gângsteres truculentos comandados por seu tio; e Doutora Liza, de Oksana Karas, inspirado na história real de uma médica devotada aos moradores de rua, uma espécie de Padre Julio Lancelotti de jaleco médico no lugar da batina.