Um dos artistas mais originais e encantadores da história do cinema tem agora disponível em streaming quase toda a sua obra, que é exígua em quantidade, mas imensa em importância. Estou falando de Jacques Tati, que em três décadas de cinema dirigiu apenas cinco longas-metragens. Quatro deles estão no Mubi. Em ordem cronológica: Carrossel da esperança (1949), Meu tio (1958), Playtime (1967) e As aventuras de M. Hulot no tráfego louco (1971). Só ficou de fora, por enquanto, As férias do Sr. Hulot, de 1953.
Em todos está o próprio Tati, encarnando o célebre Monsieur Hulot, que de um filme para outro pode mudar de cidade e de ocupação, mas mantém sempre a mesma figura identificável ao primeiro olhar: alto, desengonçado, de pernas compridas, casaco bege surrado, passos hesitantes, guarda-chuva, chapéu e cachimbo.
É, por um lado, um homem em cômica desarmonia com seu entorno, portanto próximo da tradição de humor que vai de Buster Keaton a Jerry Lewis. Sua originalidade, porém, está na recusa do burlesco e da bufonaria, quase como se Hulot tivesse vergonha de ser engraçado. Seu humor raramente provoca a gargalhada, mas quase sempre um sorriso de compreensão e, com frequência, de iluminação.
Mecanização do mundo
Mas o que essa comicidade sui generis ilumina? Em poucas palavras, o absurdo do mundo urbano contemporâneo. A desumanização das relações humanas, a mecanização do movimento do mundo. Paradoxalmente ou não, esse processo é acompanhado por uma atribuição de características humanas às máquinas, como se Tati (e não Hulot) chegasse à mesma conclusão de Macunaíma depois de uns dias na metrópole: “Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens”.
Observando em ordem cronológica a filmografia de Tati podemos ver como se desenvolve e se depura esse seu olhar ao mesmo tempo crítico, desencantado e amoroso à realidade de seu tempo.
Em O carrossel da esperança Hulot é o carteiro que entrega de bicicleta a correspondência em um vilarejo de província justamente num dia de festa, em que uma feira itinerante de diversões se instala na praça principal. Entre as atrações há uma tenda de cinema que exibe um documentário institucional sobre o moderno sistema postal norte-americano, com seus aviões, lanchas e helicópteros.
Hulot fica siderado, querendo superar em minutos o abismo entre as condições circundantes e as que viu na tela. É uma sátira da França do pós-guerra, seduzida pelo capitalismo tecnológico e de consumo made in USA, mas é também uma manifestação da inquietação de Tati diante da morte de uma determinada ordem, de um determinado ritmo de vida, e o nascimento de outra coisa, ainda difusa, mas fascinante e ao mesmo tempo assustadora. Essa outra coisa, grosso modo, é o mundo em que vivemos hoje.
Em Meu tio, o contraste entre esses dois mundos é figurado geograficamente: há, de um lado, a vila tradicional (Saint-Maur, na região metropolitana de Paris) onde vive o tio do título e há, de outro lado, a moderna fábrica de mangueiras de plástico e a casa hi-tech onde mora o sobrinho com os pais burgueses. O bairro do tio é uma representação quase caricatural da velha vida popular francesa, com seu mercado de frutas, suas senhoras regando flores na janela, seus cachorros vira-latas, suas crianças brincando nas ruas. Na casa moderna tudo é limpo, organizado, automático e asséptico.
Truffaut escreveu na época (1958) que “os dois mundos em oposição são aquele de há vinte anos e aquele no qual viveremos daqui a vinte anos”. A cenografia acentuava, com seus pequenos exageros e deslocamentos, os tempos e os modos de vida.
Não por acaso, os dois filmes seguintes do diretor se passam, ao menos em parte, em cenários ostensivamente artificiais e modernosos: uma feira de utilidade domésticas (Playtime) e um salão do automóvel (As aventuras de M. Hulot no tráfego louco).
Em Playtime, a ambientação é a parte nova de Paris, com seus altos prédios de aço e vidro, seus elevadores ultrarrápidos, seus apartamentos que parecem vitrines de lojas de móveis. Uma turista que quer fotografar “a verdadeira Paris” tem que se contentar com uma banca de flores numa esquina e as imagens distantes da torre Eiffel e do Arco do Triunfo refletidas no vidro espelhado de um edifício.
Balé mecânico
Mais importante do que a história narrada ali é a coreografia dos corpos e das máquinas, o balé mecânico e humano em que Tati converte a sua representação da vida urbana-industrial. Os enquadramentos, a decupagem das cenas – a montagem, em suma, no sentido amplo da palavra, não obedece a objetivos narrativos, nem à definição psicológica dos personagens, mas sim a valores rítmicos e plásticos, o que fica mais evidente na sequência final, em que uma rotatória se transforma magicamente num carrossel, sugerindo a cidade toda como um gigantesco parque de diversões. Poucas vezes crítica e poesia estiveram unidas de forma tão indissociável.
Em seu último filme, cujo singelo título original (Trafic) virou no Brasil o quilométrico As aventuras de M. Hulot no tráfego louco, Tati combina magistralmente duas linhas de força desenvolvidas em suas obras anteriores: o contraste entre uma França ancestral, semi-rural, e o capitalismo industrial avançado; e o esgarçamento da narrativa cronológica, consecutiva, por meio de uma profusão de digressões.
Em resumo, trata-se de levar a um salão internacional do automóvel em Amsterdã o protótipo de uma perua-camping projetada para a Altra Motors pelo criativo engenheiro Hulot. O filme tem então dois focos narrativos: a viagem do caminhão que transporta o carro para o salão; e a montagem da exposição propriamente dita.
Uma série de contratempos (pneu furado, fim do combustível, problemas com a polícia de fronteira, etc.) faz dessa jornada que deveria durar algumas horas um road movie inusitado que se arrasta por vários dias, a ponto de quase jogar para o segundo plano o objetivo final da viagem. É uma mudança de perspectiva que chega a lembrar o conto A autoestrada do sul, de Cortázar, que inspirou vagamente o Week-end à francesa (1967) de Godard.
Nessa narrativa episódica e dispersiva, reencontramos os tempos distendidos de uma França à margem do progresso industrial e da eficiência tecnológica. Enquanto os executivos da Altra se descabelam no estande vazio da empresa no salão de Amsterdã, Hulot, seu motorista (Marcel Fraval) e a descolada relações-públicas Maria (Maria Kimberly) envolvem-se num sem-número de incidentes e confusões à beira da estrada.
Tudo se reconfigura ou, para usar uma palavra em voga, se ressignifica. A demonstração das qualidades da perua-camping que deveria ser feita no salão acaba se dando num posto da polícia holandesa de fronteira. Obra digna de um professor Pardal, o conjunto de engenhocas prodigiosas do carro, como a grade do motor que vira uma grelha de churrasco, ou a buzina que se transforma num acendedor, proporciona uma sequência antológica, comparável à do restaurante virado de pernas para o ar em Playtime.
Mas qualquer descrição é empobrecedora. Senhor absoluto de seus meios, Tati conforma tudo (cenografia, enquadramento, mímica, ritmo, ruídos) a uma reconstrução musical e coreográfica do mundo. É uma visão ao mesmo tempo poética e subversiva, crítica e amorosa, cruel e melancólica, a mostrar que até mesmo o absurdo tem sua beleza.