“A política, numa obra literária, é um tiro de pistola no meio de um concerto, algo grosseiro, mas ao qual não é possível recusar a atenção”, escreveu celebremente Stendhal há quase duzentos anos. Essa ideia, estendida ao cinema e a todas as artes, me veio à mente ao observar que estão em cartaz dois filmes brasileiros que abordam a política de maneiras radicalmente distintas: Legalidade, de Zeca Brito, e Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.
Legalidade aborda um evento crucial para a história da república, o momento em que, após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, havia uma ameaça de golpe militar para impedir a posse do vice, João Goulart, então em viagem à China comunista. O filme destaca o papel do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola (Leonardo Machado), na defesa da legalidade.
A esse quadro já em si explosivo – pois estávamos à beira de uma guerra civil – a narrativa acrescenta o drama amoroso de dois irmãos, um antropólogo (Fernando Alves Pinto) e o outro jornalista (José Henrique Ligabue), envolvidos com a mesma mulher (Cleo Pires), enviada do Washington Post e possível agente da CIA.
Completa a trama a investigação levada a cabo décadas depois pela filha (Letícia Sabatella) daquela mulher fatal, para saber de fato qual foi o papel que ela jogou nos eventos.
Épico e melodrama
Temos, portanto, a reconstituição de um acontecimento real, de permeio com um enredo sentimental. O épico misturado com o melodrama. Nenhum problema nisso, em princípio. O problema é a maneira didática, convencional e ilustrativa como essas coisas se articulam e são apresentadas.
O tom cívico-patriótico dos discursos e até das conversas pessoais, o tratamento estandardizado das cenas dramáticas, a reconstituição de época enrijecida, o uso retumbante da música, tudo isso deixa Legalidade mais com cara de minissérie de TV educativa do que propriamente de cinema.
“Sem forma revolucionária não há arte revolucionária.” Se levada às últimas consequências, a famosa frase de Maiakovski deixaria muito pouca coisa de pé na história do cinema político: Eisenstein, Glauber, Pasolini, Godard e uns poucos outros.
Não se trata, então, de aderir a essa exigência rigorosa, uma vez que pode haver cinema político da mais alta categoria na estética clássica de um Visconti, por exemplo, ou na utilização criativa dos códigos de um gênero específico, como foi o vigoroso policial político italiano dos anos 1960 e 70 (Francesco Rosi, Elio Petri, Damiano Damiani, etc.). Ou mesmo, em seus bons momentos, no suspense político de Costa-Gavras.
Eficácia transformadora
Não há regras predefinidas para determinar o que é o “bom cinema político”. Mas sua eficácia transformadora – isto é, sua capacidade de sacudir e desestabilizar o espectador – depende, sim, da forma.
Um filme como Legalidade, por suas opções formais, tende a ser uma ilustração inócua de uma determinada leitura (aliás hegemônica, quase consensual) de um fato histórico. Mais do que isso, tende a submeter seu conjunto de questões à mecânica do melodrama.
Algo semelhante acontece em Olga (2004), de Jayme Monjardim. Ambos mostram que não basta “estar do lado certo da história” para criar uma obra historicamente relevante. As figuras do melodrama (sofrimento, culpa, entrega, traição, redenção) tendem a se sobrepor à apreensão das forças históricas em ação. O espectador sai do cinema apaziguado em suas emoções e seguro de suas convicções, como ao final de uma telenovela.
Voltamos então a Bacurau, do qual já falei um pouco quando foi lançado. É óbvio que não se trata de “comparar” dois filmes de natureza tão diversa (um recria um evento real do passado, o outro inventa uma situação no futuro), mas apenas de chamar a atenção para o que considero a força maior do longa-metragem de Mendonça e Dornelles: a utilização criativa, autêntico saqueio antropofágico, do patrimônio cinematográfico universal – sobretudo americano, no caso.
Se Bacurau está rompendo a bolha da cinefilia e do público dos filmes “de arte”, invadindo o terreno das discussões políticas, sociológicas e psicanalíticas, é porque mobiliza com vigor e competência signos da cultura popular que vão do cinema de ação hollywoodiano à literatura de cordel, dos repentistas de feira à ficção científica, da alta literatura aos memes de internet.
Equívocos sobre Bacurau
Boa parte da incompreensão demonstrada por certos comentaristas de política, cultura e até economia diante do filme vem, a meu ver, da ideia equivocada de que uma obra de arte deve explicitar um pensamento articulado, unívoco e inequívoco, sobre a história do país ou do mundo, como se fosse um tratado ou, pior, um receituário político, quando muito uma ilustração em imagens de um discurso prévio. (É o que fazem, por exemplo, Legalidade e Olga.)
Só que arte – mesmo uma arte popular, uma “atração de feira” como o cinema – não é análise, mas síntese. É uma espécie de concentrado de pulsões, sentimentos e intuições nem sempre compreendidos racionalmente por seus próprios realizadores. Daí vem sua força, daí sua capacidade de suscitar leituras diversas e, não raro, conflitantes.
A forma de Bacurau pode não ser revolucionária, como queria Maiakovski. Mas o barulho que ele vem provocando mostra que, por força de sua alquimia e também do momento que o país atravessa, ele tocou num nervo, numa ferida aberta, numa fratura exposta. Cada espectador que se vire com isso.