“Racismo estrutural” é uma das expressões mais usadas no Brasil nos últimos tempos – e com motivo. O perigo é as palavras se desgastarem pelo uso sem que os indivíduos apreendam seu real significado. Um filme como M8: Quando a morte socorre a vida dá concretude ao conceito, ou melhor, corporifica-o, pois o que se conta ali é a história de um punhado de corpos negros, vivos e mortos. Trata-se do quarto longa-metragem de Jeferson De, e entrou em cartaz ontem (24 de fevereiro) na Netflix.
Ao estrear no longa em 2010, com o drama paulistano de periferia Bróder, Jeferson De, um dos raros cineastas negros brasileiros em atividade na época, foi saudado como “nosso Spike Lee”.
Se, por um lado, o diretor se sentiu lisonjeado pelo epíteto, por outro percebeu o risco de ser estigmatizado como “cineasta de gueto” e enquadrado num escaninho. Partiu então para outros caminhos, experimentando gêneros diversos: o terror em O amuleto (2015), a comédia em Correndo atrás (2018), além de séries de TV como Condomínio Jaqueline, Revolta dos malês e Escola de gênios. Amadurecido como cineasta e como cidadão, ele volta agora a encarar diretamente o tema das fraturas raciais e sociais no Brasil contemporâneo.
O protagonista de M8 é Mauricio (o ótimo Juan Paiva), estudante negro de medicina numa faculdade do Rio. Nas aulas de anatomia, ele se dá conta de que praticamente todos os cadáveres usados para dissecação são de jovens negros de ambos os sexos. (Um corpo em especial o intriga, aquele identificado como M8.) Colega negro, por outro lado, ele não tem nenhum.
A partir desse descompasso racial básico o filme entretecerá outras tramas, a principal delas o assassinato ou sumiço de jovens negros nas favelas e bairros pobres. Filho de uma auxiliar de enfermagem (Mariana Nunes) que cuida de idosos de classe média alta, Mauricio transita entre a periferia carioca e a zona sul. Na faculdade, com suas novas amizades, esse convívio inter-racial se acentuará, com situações que variam da harmonia ao confronto, passando pelo desconforto.
Gradações do racismo
Jeferson De e os co-roteiristas Carolina Castro e Felipe Sholl desenvolvem cada uma das relações pessoais de Mauricio como gradações da tensão racial. Acertam mais quando o preconceito emerge na chave da sutileza. Um exemplo: quando a colega de faculdade Suzana (Giulia Gayoso) leva o rapaz de carro a um bairro periférico e os dois estão no carro, prestes a trocar seu primeiro beijo, ela percebe pelo retrovisor a aproximação de uns rapazes negros e “instintivamente” se assusta, rompendo todo o clima erótico-afetivo.
Escrevi “instintivamente” entre aspas porque não se trata de instinto, mas de cultura: o racismo é algo que se instila num indivíduo desde o berço, como fica claro na relação entre Suzana e sua mãe.
Os pontos frágeis do filme, a meu ver, são dois: a caracterização algo caricatural, maniqueísta, do personagem mais ostensivamente racista (um colega de classe que, ainda por cima, parece ter ciúme do namoro entre Suzana e Mauricio); e uma certa redundância no discurso da mãe do protagonista, explicitando coisas que já estavam claras na narrativa. (Na sua discussão mais acalorada com o filho, ela chega a usar quase as mesmas palavras de um rompante de Marielle Franco na Câmara do Rio: “É uma mulher preta que está falando, não me interrompa”.)
Nada disso, porém, anula a força de M8 e a habilidade com que entrelaça o drama pessoal do protagonista à tragédia das famílias enlutadas das favelas e ao vigor da cultura popular negra, não hesitando em abraçar a dimensão do fantástico e uma possível leitura umbandista dos acontecimentos. E há também o sentido urgente, documental: salvo engano, algumas das mulheres que aparecem protestando por justiça perderam de fato seus filhos para a violência policial.
Solidariedade ativa
Do ponto de vista da mise-en-scène, é notável o amadurecimento de Jeferson De na direção de atores e na decupagem das cenas. Um exemplo é a sequência da morte súbita e silenciosa do velho médico Salomão (Pietro Mário), cuidado pela mãe de Mauricio. Num longo plano sem cortes, mas com uma câmera deslizante e de foco profundo, desenha-se todo o drama, com uma coreografia precisa de três personagens (Salomão, Mauricio e sua mãe), ao som da música favorita do velho (uma peça de Chopin). É um momento que se pode chamar de sublime.
Se o diabo está nos detalhes, o racismo também está, e o filme capta alguns deles de maneira perspicaz: a mulher branca que se inquieta em silêncio quando o rapaz negro senta a seu lado no ônibus; o porteiro do prédio de Suzana que pergunta a ela duas vezes se está tudo bem antes de abrir o portão da garagem, ao ver que Mauricio está ao lado da moça no carro. Detalhe: o porteiro também é negro, assim como o policial que aborda com truculência o rapaz de madrugada numa avenida da zona sul. “Cara, se liga, dando mole a esta hora num bairro de playboy?”, diz o policial (Rocco Pitanga), apontando para a própria pele escura.
O que o filme nos mostra de mais doloroso é isso: o racismo introjetado até mesmo em muitos negros, em especial nos encarregados de garantir a segurança da redoma dos brancos.
Mas, como se verá, a atitude que prevalece entre os personagens negros (e alguns brancos) é a da solidariedade ativa. E o diretor parece disposto a marcar essa posição muito concretamente: no elenco de apoio estão atores negros importantes de várias gerações, de Léa Garcia a Lázaro Ramos, passando por Zezé Motta, Ailton Graça e João Acaiabe, além dos já citados. Para provar que, acima de qualquer coisa, Jeferson De continua sendo bróder de seus bróders.