Com uma certa ironia, o cineasta filipino Lav Diaz apresenta seu novo filme, Estação do diabo, como uma ópera-rock. Talvez uma definição mais precisa seja “uma tragédia cantada”. Ao longo de quase quatro horas, Diaz faz da recriação ficcional de acontecimentos da história filipina o mergulho num mundo convulsionado pelo mal. É uma obra gêmea da novela O coração das trevas, de Conrad, e poderia tomar emprestado seu nome.
Estamos em 1979, quando a “lei marcial” do ditador Ferdinand Marcos já vigora há alguns anos e suas brigadas paramilitares espalham o terror pelo país, sequestrando, torturando e matando opositores do regime. Qualquer semelhança com as Filipinas de hoje, dominadas pelo tirano Duterte, não será mera coincidência. Como se canta em algumas passagens do filme, “o homem não aprendeu nada, segue criando fantasmas e mitos, e as mentiras se tornam verdades”.
Sim, todos os diálogos são cantados a capela, o que confere uma estranha dimensão onírica à narrativa, de resto composta de personagens, lugares e ações muito concretos e verossímeis – com exceção da bizarra figura do grande líder dos milicianos (Noel Santo Domingo), um homem literalmente com duas caras, uma voltada para a frente, outra para trás.
Há também a personagem fantástica de uma narradora que, mais do que contar os acontecimentos exteriores, dialoga com os pensamentos e sentimentos de um dos protagonistas, o poeta e professor Hugo Haniway (Piolo Pascual). A mulher de Hugo, Lorena (Shaina Magdayo), uma médica jovem e idealista, sai da cidade para montar uma clínica numa aldeia remota e passa a ser hostilizada e ameaçada pelos milicianos locais. Depois de um tempo, seu marido sai à sua procura.
Sensação de desarranjo
No caminho desses dois personagens encontramos outras figuras marcantes, com destaque para uma mulher (Pinky Amador) que perdeu marido e filho para a brutalidade dos milicianos. Ela ganha o epíteto de “A Coruja”, um dos seres imaginários inventados pelos paramilitares para infundir medo nos aldeões e colocá-los contra os rebeldes.
Já falei muito do enredo, mas o que mais importa é a maneira como Lav Diaz constrói esse mundo conflagrado, em que a quietude majestosa da natureza é rasgada pela insanidade da história humana. Há, antes de tudo, o magnífico preto e branco extremamente matizado que o cinéfilo já conhece de obras anteriores do diretor. Cada cena em geral se resolve num único enquadramento fixo (ou quase), com máxima profundidade de campo, em que convivem várias camadas de imagem, todas perfeitamente legíveis.
Sobretudo nas cenas internas, o ângulo ligeira ou acentuadamente oblíquo adotado pela câmera cria linhas diagonais e multiplica os vértices do espaço, pontos de fuga que produzem uma sensação de desarranjo e instabilidade, intensificada às vezes por lentes grande-angulares ou coisa que o valha, distorcendo levemente volumes e distâncias. São raras, mas notáveis, as passagens francamente estilizadas: um ritual político de derrubada do busto de um inimigo, um estupro filmado todo com silhuetas na contraluz. Em todos os casos, um domínio virtuosístico da iluminação.
Os enquadramentos frontais são reservados para a paisagem natural: aqui, o que desequilibra e distorce o espaço é invariavelmente a intervenção humana, a entrada em cena dos indivíduos e de seus conflitos.
Uma situação repetida muitas vezes é a do plano aberto de um caminho entre a vegetação, no qual aparecem, no fundo do quadro, figuras humanas minúsculas, que vão crescendo à medida que caminham em direção à câmera. O plano simetricamente oposto, de vultos diminuindo até sumir no ponto de fuga, também é frequente. Nesse procedimento reiterado, tem-se quase a impressão de que a natureza é um cenário fixo, harmônico, que o homem invade como quem rasga o pano de fundo de um palco para entrar em cena.
Correndo o risco de forçar um pouco a barra, vejo essa configuração visual como a expressão estética da ideia cantada em versos mais de uma vez ao longo do filme: “A queda das folhas, o som das ondas. Quando você ficará livre desses tempos?” É quase um haicai a dizer que há dois tempos convivendo em conflito, o tempo cíclico e imutável da natureza e o tempo histórico em que estamos imersos e que no mais das vezes nos impede de imergir no primeiro.
Do bucólico ao drama
Uma cena singela ilustra essa ideia. Um homem que atua como líder espiritual de uma comunidade (um professor? sacerdote? ativista?) pesca tranquilamente com seu caniço num rio de águas cristalinas. De repente, sem que haja vento, folhas se agitam numa árvore próxima. Temos a impressão de avistar um vulto entre a folhagem. O homem recolhe às pressas seus apetrechos e se esgueira mata adentro, saindo de quadro. A cena bucólica se converte em tensão dramática, a história invade a natureza.
Eu disse lá em cima que, a despeito de sua ambientação histórica, Estação do diabo está às voltas com as Filipinas de hoje, dominadas pelo terror de Duterte, mas seu alcance político e moral pode ser estendido a outras latitudes do mundo atual. É um filme que fala da brutalidade como um sistema, da opressão como um processo que, para se autoalimentar, precisa destruir o pensamento e a sensibilidade humanos. Não é por acaso que seus trágicos protagonistas são um poeta e uma médica. A arte e a ciência são vítimas preferenciais do obscurantismo em vigor – e não apenas nas Filipinas.
Fevereiros
Se o filme de Lav Diaz usa a música para mergulhar no âmago do terror, o documentário brasileiro Fevereiros, de Marcio Debellian, pode ser visto como seu contraponto: a música como celebração da vida, da tolerância, do amor.
https://www.youtube.com/watch?v=qWq5uT4nXXo
Tomando como ponto de partida o desfile vitorioso da Mangueira em 2016, que teve como enredo “Maria Bethânia: a menina dos olhos de Oyá”, o filme mergulha na formação pessoal, religiosa e musical de Bethânia em sua cidade natal, Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano.
Conduzidos pelas falas da própria cantora, de seus irmãos Caetano e Mabel Veloso, do carnavalesco mangueirense Leandro Vieira e do historiador Luiz Antonio Simas, entre outros, somos levados a um mergulho na riqueza cultural daquele berço em que se misturam o samba, o catolicismo e o candomblé.
Com uma edição primorosa de imagens de época de Santo Amaro, dos ensaios da Mangueira e do desfile propriamente dito, é um documentário ao mesmo tempo informativo e celebratório, uma imersão inteligente e sensível num Brasil “festeiro, santeiro e macumbeiro”, para usar a expressão de Darcy Ribeiro para o nosso sincretismo religioso.
Embora talvez não fosse sua intenção inicial, o filme acabou por adquirir um aspecto de libelo de resistência da cultura popular e da tolerância religiosa, ameaçadas hoje pelo fundamentalismo neopetencostal e pela obtusidade triunfante.