Não é de hoje que o cinema brasileiro tem uma dívida inestimável com a nossa música popular. Pelo menos desde Carmen Miranda e os musicais carnavalescos dos anos 1930, ela tem sido um manancial inesgotável a animar nossas imagens em movimento. Agora se nota um movimento inverso, uma tentativa de retribuir um pouco dessa dádiva, em filmes documentais e de ficção dedicados a músicos, compositores, cantores e cantoras de destaque.
O documentário Nada será como antes, de Ana Rieper, se enquadra nessa linha, ao contar a história do Clube da Esquina, aquele grupo de músicos e compositores mineiros que marcou nossa cultura para sempre desde o início dos anos 1970. Melhor dizendo: a diretora deixa que os próprios membros do clube contem sua história pessoal e coletiva.
Começa com imagens em preto e branco de Milton Nascimento, ainda jovem, traçando no programa de TV “Ensaio” as coordenadas geográfico-afetivo-musicais do movimento: “Clube da Esquina. Rua Divinópolis, bairro de Santa Tereza, Belo Horizonte, casa de Salomão Borges, pai. Pai, mãe e a prole, onze filhos, dez agregados, entre eles eu – e todos músicos”.
Localização espaço-temporal
As imagens seguintes, filmadas hoje, mostram o prédio em que moravam os Borges, enquanto os dois irmãos mais famosos, Lô e Marcio, rememoram o início de tudo, o encontro casual entre Lô, então com dez anos, e Milton, dez anos mais velho, quando este dedilhava o violão e cantava sentado num degrau da escada do edifício.
A partir dessa localização histórico-geográfica, que inclui tomadas atuais e de época nas ruas centrais de Belo Horizonte, o filme se desdobra em depoimentos e conversas do pessoal do “clube”, rememorando casos, parcerias, encontros, composições. Algumas histórias são divertidas, outras comoventes, todas saborosas.
O mérito maior do documentário, a meu ver, é equilibrar a música e a amizade, mostrando que, no caso dessa turma, os dois termos são quase sinônimos.
Para os cinéfilos, um atrativo especial é a relação dos músicos mineiros com o cinema. Assistir juntos a Jules e Jim, de Truffaut, reforçou a afinidade e selou a amizade entre Marcio Borges e Milton Nascimento. “Minhas músicas são sempre pedaços de filmes”, diz Milton. E os depoimentos são justapostos, no documentário, a trechos de fitas dos anos 1960, como o curta Documentário, de Rogério Sganzerla, e o longa Jardim de guerra, de Neville d’Almeida.
Influências díspares
Nada será como antes ganha uma relevância cultural extraordinária quando os músicos falam sobre as influências díspares que os inspiraram.
Beto Guedes, por exemplo, fala dos Beatles (tema de uma canção famosa de Lô e Marcio Borges, “Para Lennon e McCartney”), Wagner Tiso cita uma “base sólida do erudito” (Chopin, Ravel) e uma proximidade com a música cigana do leste europeu, Nivaldo Ornellas destaca o influxo do jazz de Miles Davis e John Coltrane, Flavio Venturini relembra o rock progressivo do Genesis, Robertinho Silva diz que sua percussão vem dos batuques dos terreiros de candomblé. Ao cantar e batucar “Cravo e canela”, Robertinho diz, radiante: “Isso é rock? Não, né? Isso é afro”.
Nada, portanto, das frias explanações externas de “especialistas” e comentadores, tão comuns em documentários desse tipo, mas sim depoimentos calorosos de quem aprendeu e descobriu fazendo. Um ponto alto desse desnudamento da música do grupo é a demonstração dada por Toninho Horta de um solo de guitarra (de “Trem azul”, se não me engano) em que ele funde o estilo jazzístico de Wes Montgomery e as terças dos violeiros caipiras.
Desse tipo de alquimia sonora surgiu um dos momentos mais altos da música popular brasileira, o álbum duplo “Clube da Esquina”, de 1972, que irrigou nossa cultura e alavancou as carreiras de uma dúzia de músicos e compositores de primeira linha. “Um grande país eu espero/ do fundo da noite chegar”, diz a letra de “Clube da Esquina 1” (Milton Nascimento, Lô e Marcio Borges). Um dia esse país tão torto e cruel há de merecer a música maravilhosa que produz.