- Amos, estou contente em encontrá-lo novamente. Acho que nos encontramos há 15 anos na Palestina.
- Sim, no que você chama de Palestina e eu chamo de Israel.
- Eu sinto que tenho um conflito interno sobre essa situação. Como podemos ser amigos, e, ao mesmo tempo, você ter mais direitos do que eu em meu próprio país, e como você pode aceitar esse fato?Trecho do diálogo entre Amos Kenan e Rashed Hussein, do filme Diálogo árabe israelense.
Aaron Cutler e Mariana Shellard (curadores da Sessão Mutual Films)
Amos Kenan nasceu em 1927, em Tel Aviv, no então Mandato Britânico da Palestina, que havia iniciado em 1917. Seu pai trabalhava na construção civil e fez parte do movimento socialista sionista, Gdud HaAvoda, fundado em 1920 e responsável pela defesa e formação dos primeiros assentamentos judeus no território. Quando jovem, Amos participou do movimento sionista da juventude Hashomer Hatzair (inspirado no escotismo de Robert Baden-Powell), e posteriormente integrou o grupo sionista paramilitar Lehi (Guerreiros Pela Liberdade de Israel), que lutou contra a presença britânica na região e foi responsável por diversos atos terroristas contra seus soldados.
Nesse período, Kenan possuía uma forte inclinação socialista e, consequentemente, acreditava que o principal problema na região residia no imperialismo europeu, e não em seus conterrâneos árabes. Ainda assim, ele lutou na Primeira Guerra Árabe-Israelense, logo após a fundação do Estado de Israel, em 1948, pois enxergava a existência de um estado judeu como uma necessidade fundamental, e viu as atrocidades do Partido Nazista cometidas no Holocausto como evidência de que nenhum outro país estava pronto para abrigar seu povo. Subsequentemente, ele trabalhou em prol de uma nação mais justa e digna. Como cineasta, dramaturgo, escultor, pintor e romancista, Kenan fez críticas constantes à tendência nacionalista e ao impulso imperialista que viu na sociedade israelense. E, como jornalista, seus atos de denúncia contra seu governo incluíram o primeiro uso na imprensa israelense do termo “ocupação” em referência às aquisições militares de terras com populações majoritariamente árabes e muçulmanas após a Terceira Guerra Árabe-Israelense, ou Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Rashed Hussein nasceu em 1936, na aldeia árabe de Musmus, também durante a liderança britânica da Palestina. Ele era demasiado jovem para participar diretamente na luta armada de 1948, porém testemunhou o impacto que o evento chamado pelos israelenses de Guerra da Liberação teve sobre seu povo. Os resultados da guerra incluíram o que ficou conhecido como al-Nakba (árabe para “a catástrofe”) – o deslocamento forçado de mais de 700.000 árabes que até então moravam no território palestino, resultando em uma enorme crise de refugiados palestinos, que se repetiria em uma segunda onda, após a vitória israelense em 1967.
A família de Hussein não foi expulsa de sua aldeia, porém o jovem sentiu na pele a condição de ser um cidadão de segunda classe em um país onde subitamente existiam leis e supervisões militares estritas sobre um grupo que morava na região há séculos. Ao crescer, se tornou professor de alunos economicamente desfavorecidos e editor literário em Nazaré, e defendeu uma coexistência pacífica com os israelenses para garantir uma vida justa para os palestinos. Tornou-se um dos poetas árabes de maior importância para sua geração, com poemas que tratavam da herança do conflito árabe-israelense de uma forma extremamente pessoal e luminosa. Foi um dos únicos artistas palestinos a escrever regularmente nas duas línguas do seu país, e também foi responsável pela tradução de diversas obras de artistas de língua árabe para o hebraico e vice-versa.
No início da década de 1960, Hussein trabalhou como editor do jornal do partido político marxista-sionista Mapam, mas foi expulso do partido por suas posições políticas, sendo tanto um crítico feroz dos governantes israelenses quanto dos líderes árabes que negligenciavam a questão palestina. Nesse período, ele conheceu e tentou realizar um roteiro de cinema (sem sucesso) com o diretor norte-americano judeu Lionel Rogosin (1924-2000), que havia morado em Israel em 1953 e voltou para lá nos anos 1960 com sua família. O nova-iorquino Rogosin era um progressista, cujo filme anterior, a docuficção De volta à África (Come Back, Africa, 1959), expôs de forma inédita a realidade do apartheid na África do Sul. Ele se mudou para Israel com a intenção de fazer uma pesquisa para o filme híbrido Good Times, Wonderful Times (1965), uma obra antibélica cujas imagens das atrocidades de guerra foram compiladas em 12 países.
Rogosin deixou Israel em 1964, após se envolver com ativistas pela paz de ambos os lados do conflito. Hussein também saiu do país, em 1965, morando como um exilado, primeiro em Paris e depois em Nova York. Lá, trabalhou para o escritório local da organização paramilitar OLP (Organização para a Libertação da Palestina) e conviveu com um grupo descontraído de amigos esquerdistas, entre eles Rogosin e Amos Kenan, que visitava a cidade com uma certa frequência. As conversas entre eles, e especialmente uma conversa entre Kenan e Hussein durante um jantar em 1973, gerou o último filme que Rogosin conseguiu realizar.
Diálogo árabe israelense (Arab Israeli Dialogue, 1974) foi filmado durante dois dias, em setembro de 1973, com Kenan e Hussein sentados no porão do Bleecker Street Cinema, uma sala de cinema de arte que Rogosin fundou em 1960 para poder passar De volta à África em seu país racista. O documentário é uma tentativa de registrar uma conversa entre duas pessoas que acreditavam que a paz entre israelenses e árabes era possível, porém vislumbravam diferentes caminhos e soluções para atingi-la. O filme também oferece um diálogo visual entre a presença palpável dos dois intelectuais – filmados em preto e branco pelo cinegrafista Louis Brigante, colaborador frequente de Rogosin e outros cineastas independentes nova-iorquinos de sua geração –, e a visão idílica da silenciosa e vasta paisagem e heterogeneidade dos habitantes de Israel, filmada a cores por Rogosin durante sua primeira estadia no país.
Um metódico e rigoroso Kenan expressa que é apenas por meio da existência de um estado judaico que judeus podem viver em paz e, assim sendo, defende a solução de dois estados para evitar conflitos e desigualdades impostos às populações por políticos hipócritas e corruptos. Enquanto isso, Hussein fala de forma mais devagar e reflexiva sobre os direitos específicos dos quais ele foi privado por uma governança sionista, para argumentar em favor de um estado único, laico e sem hierarquias, onde todos possam coexistir. Em um momento, ele diz: “Da minha parte, e acho que da parte do Amos também, nós não estamos lutando para matar, mas para viver. Por isso é uma tragédia.”
O período em que Rogosin, Hussein e Kenan se encontraram pela primeira vez em Israel coincidiu com a publicação do que se tornou uma das obras fundamentais da literatura árabe moderna. Homens ao sol (Rijal fi achams, 1963) foi o romance de estreia do autor palestino Ghassan Kanafani, que nasceu, assim como Hussein, em 1936. Porém, ao contrário da família de Hussein, a de Kanafani foi forçada pela guerra de 1948 a deixar seu país. Eles se refugiaram primeiro no Líbano, e depois na Síria, onde Ghassan escreveu contos para crianças palestinas poderem entender melhor a sua situação. Seu trabalho literário subsequente – que contou com 18 livros publicados entre ficção e não ficção – tratou da questão palestina de forma muitas vezes alegórica, existencial e autoconsciente, sempre em busca de um mundo onde os palestinos poderiam determinar seus próprios destinos. O autor também deu aula no Kuwait e passou os últimos 12 anos de sua vida no Líbano, onde trabalhou como jornalista e porta-voz da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP).
Kanafani foi assassinado, junto a sua sobrinha adolescente, por um carro-bomba implantado pela Mossad (o serviço secreto israelense) em abril de 1972, poucos meses antes da estreia mundial de Os enganados (Al-makhdu'un, 1972), a adaptação para o cinema de Homens ao sol. O livro narra a história de três palestinos de gerações diferentes que se veem forçados a deixar sua terra natal para buscar sustento no Kuwait. Abu Quais, o mais velho, é um simples camponês, que desfrutou de uma vida pacífica e abastada, trabalhando na plantação de oliveiras, até ter sua terra surrupiada pela guerra de 1948 e ser jogado, junto com a família, em um campo de refugiados. Asaad é um jovem ativista político procurado pela polícia, que, desiludido com a luta armada e irado com a imposição de um casamento arranjado, decide deixar seu país. O adolescente Marwan precisa abandonar os estudos para sustentar sua mãe e irmãos mais novos após seu irmão mais velho parar de enviar dinheiro do Kuwait e seu pai se divorciar e se casar com uma mulher mais rica que perdeu uma perna em um bombardeio em 1948, porém possui meios para sustentar o novo marido.
Os três se cruzam na cidade iraquiana de Basra, às margens do rio Chatt-Alarab[1], onde procuram um contrabandista para ajudá-los a atravessar a fronteira entre o Iraque e o Kuwait. Eles encontram Varapau – um palestino que lutou ao lado de Abu Quais na guerra de 1948 e se tornou um mercenário que dirige um tanque de água para um rico kuwaitiano. O motorista negocia transportar os três homens por um valor inferior ao dos contrabandistas mais estabelecidos, contudo eles precisarão passar alguns minutos escondidos dentro do tanque de água vazio sob um calor escaldante para atravessar dois postos alfandegários. No segundo posto, os funcionários alfandegários seguram Varapau, exigindo que ele lhes confirmasse a história contada por seu patrão sobre uma suposta dançarina e amante do contrabandista. O tempo crucial passa, e Varapau deixa o posto com 30 minutos de atraso. Quando, já adiante na estrada, abre a tampa do tanque, se depara com três cadáveres. O romance termina com Varapau indagando para o vento por que seus conterrâneos, que morreram em silêncio, não bateram nos laterais do tanque.
A história se passa em 1958, no mesmo momento em que houve uma tentativa de unificar o mundo árabe com a criação da República Árabe Unida (dissolvida em 1961), liderada pelo presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, e a revolução iraquiana, que colocou no poder o nacionalista Abd al-Karim. A situação política na região do Oriente Médio continuou sendo volátil em 1964, quando o cineasta egípcio Tewfik Saleh (1926-2013) leu Homens ao sol e se interessou em adaptá-lo para o cinema. Saleh era um comentarista social de espírito humanista que veio no contrafluxo da grande indústria de cinema egípcio, por trabalhar somente nos projetos que se interessava em realizar, tendo uma paixão especial pelos escritores e pela literatura. Em seus primeiros nove anos como cineasta, Saleh fez apenas seis curtas e dois longas-metragens. Entre eles, seu longa de estreia, Darb al-mahabil (1955), uma colaboração com o grande autor egípcio Naguib Mahfouz, cuja narrativa sobre as diferentes reações dos residentes de um beco quando um morador de rua ganha na loteria trouxe elementos inéditos de realismo para o cinema de ficção do seu país.
Saleh também realizou um curta-metragem documental para a ONU chamado Who Are We? (1960), sobre a condição dos refugiados palestinos. Desejou continuar a trabalhar o assunto que, para o mundo árabe, era bastante delicado, e, portanto, existente em pouquíssimas obras de arte da época. Ele tentou filmar Homens ao sol no Egito, mas a censura do país exigiu diversas alterações no roteiro (escrito em parceria com Kanafani), entre elas mudar a nacionalidade dos personagens e eliminar a dimensão palestina por completo. Saleh então decidiu abandonar o projeto e o tema até 1969, quando tentou sem sucesso fazer um filme chamado O casamento palestino, no qual, em um campo de refugiados, os pais de uma noiva a preparam para o casamento com um fedayin (revolucionário palestino) que morreu em combate. A intenção de Saleh com o projeto era mostrar que os palestinos, apesar de serem despossuídos da terra, trabalhavam para manter suas tradições e cultura.
A formação de uma resistência palestina tinha se organizado ao longo da década de 1960, especialmente com a Batalha de Karameh, em 1968 na Jordânia, que levou os países árabes a apoiarem os fedayins. Porém, em 1970, o exército da Jordânia expulsou a OLP do país para proteger sua monarquia contra as movimentações de grupos socialistas, resultando em um conflito armado que ficou conhecido como Setembro Negro e deixou mais de três mil palestinos mortos. Saleh percebeu que era um momento oportuno para adaptar Homens ao sol, que finalmente conseguiu financiar e filmar na Síria, onde uma onda de filmes sobre a questão palestina estava sendo realizada pela Organização Nacional de Cinema da Síria (NFO). Três atores sírios foram elencados para interpretar os refugiados e, no papel do motorista (agora chamado de Aboul Kheizaran), um ator palestino com uma carreira consolida no cinema sírio.
O filme se mantém fiel ao livro, tanto na progressão narrativa quanto no tom, que intercala registros tensos e melancólicos. Porém, Saleh fez algumas mudanças à história original, pois queria expandir sua crítica aos responsáveis pela tragédia dos palestinos para incluir as lideranças de outros países árabes. Um monólogo interno que Abu Quais faz sobre sua situação – “Nos últimos dez anos, você não fez nada além de esperar...” – é, no filme, acompanhado por uma série de imagens documentais que intercalam a miséria dos campos de refugiados e negociações entre líderes de países árabes vizinhos, inclusive com a ONU. Asaad, um dissidente não especificado no livro, é, no filme, procurado pelas autoridades por participar de um complô para derrubar a família real. O motorista sofre o mesmo desfiguramento no livro e no filme, por causa da guerra de 1948 – a amputação de seu membro sexual –, porém o personagem agonizado de Kanafani se torna mais amargo na visão de Saleh, com sua dupla perda, da masculinidade e da pátria, culminando na perda do caráter que o levou a viver pelo dinheiro. A mudança mais radical talvez chegue como uma resposta implícita à pergunta que Varapau faz no final do livro, pois, enquanto o motorista fica detido na fronteira do Kuwait, a câmera mostra o caminhão em frente ao prédio alfandegário, com os sons de batidas na lataria abafados pelos aparelhos de ar-condicionado. É somente o espectador do filme que pode ouvi-los.
Os enganados estreou em 1972 no Festival de Cinema de Cartago, onde ganhou o prêmio principal. Foi a primeira de uma série de condecorações para um filme que circulou o mundo e chegou a ser valorizado por pesquisadores e programadores como uma das mais importantes contribuições ao cinema feita na língua árabe, apesar de não ser lançado no Egito ou no Iraque e passar apenas duas semanas na Síria. No ano seguinte, e uma semana antes da eclosão da Quarta Guerra Árabe-Israelense (também conhecida como a Guerra de Yom Kippur), Lionel Rogosin filmou Diálogo árabe israelense, uma obra que também não atingiu seu público. Em suas memórias, o cineasta norte-americano comentou que “a televisão pública me devolveu o filme como se fosse uma bomba”.[2]
Diálogo árabe israelense teve a circulação restrita principalmente a universidades nos Estados Unidos. Rogosin não conseguiu levantar fundos para realizar filmes subsequentes e teve que vender o Bleecker Street Cinema em 1974. Os enganados também acabou sendo uma das últimas obras que Saleh realizou, pois se tornou professor de cinema no Iraque e depois no Egito, conseguindo fazer apenas mais um longa-metragem. Ele comentou sua posição política em relação ao pessimismo do seu penúltimo longa em uma entrevista que deu em 1976 para uma coletânea francesa de ensaios chamada La Palestine et le cinéma: “Quando eu era mais jovem, eu acreditava com um certo romantismo que heróis podiam lutar efetivamente contra o sistema. Hoje, eu me dei conta de que os sistemas no Oriente Médio é que esmagam as pessoas. É por isso que, no meu ponto de vista, os heróis de hoje são aqueles que tem a coragem de resistir, mesmo que nem sempre alcancem resultados concretos.”[3]
No ano seguinte, em 1977, Rashed Hussein morreu em consequência de um incêndio em seu apartamento em Nova York. Seu corpo foi enterrado na sua aldeia natal em um funeral atendido por milhares de pessoas, apesar do poeta não ter pisado na Palestina em anos. Em uma entrevista que Rogosin realizou com Amos Kenan em Nova York em 1990 – uma tentativa de continuação do filme que fizeram juntos –, o israelense elogiou o palestino como um grande artista então esquecido[4]. A ocasião também marcou a primeira vez que Kenan viu Diálogo árabe israelense, e, na entrevista, ele diz: “Eu escutei e olhei para [Hussein], e tive uma sensação muito estranha de que, se ele estivesse vivo hoje, e conversássemos hoje, diríamos as mesmas coisas um ao outro. Repetiríamos as mesmas coisas, com a mesma entonação. E há algo de horrível nisso, porque significa que nada mudou.”
A Sessão Mutual Films de maio é dedicada à memória de Philip Cintra Shellard (1949-2024), um leitor assíduo e pai amoroso e dedicado, que sempre apoiou os trabalhos da Mutual Films.
Nascimento e origem: Os enganados + Diálogo árabe israelense
[1] As grafias dos nomes seguem as da tradução brasileira de Homens ao sol (trad. Safa Jubran), que foi publicada pela Editora Tabla em novembro de 2023.
[2] Citado em inglês na sinopse do filme encontrada no site do festival Il Cinema Ritrovato.
[3] O livro foi editado por Guy Hennebelle e Khemais Khayati (que também entrevistaram Saleh) e publicado em 1977.
[4] Trechos da entrevista, que ficou inédita durante a vida de Lionel Rogosin, aparecem no documentário de longa-metragem dirigido por seu filho Michael Rogosin, Imagine Peace (2019), sobre a realização de Diálogo árabe israelense.