Quem viu os filmes de Andrzej Wajda, em especial sua “trilogia da ocupação” (Geração, Canal e Cinzas e diamantes), sabe que a Polônia é uma terra trágica. Cronicamente dilacerada entre potências expansionistas a leste (Rússia) e a oeste (Alemanha), é uma nação em busca de si mesma. Guerra Fria, de Pawel Pawlikowski, é precisamente isso: um país, uma cultura, um casal de amantes no epicentro do grande conflito ideológico que marcou a segunda metade do século 20.
O casal em questão se conhece no final dos anos 1940, quando se forma na Polônia um grande grupo de música e dança tradicional patrocinado pelo governo socialista do pós-guerra. Ele, Wiktor (Tomasz Kot), é pianista e arranjador; ela, Zula (Joanna Kulig), cantora e dançarina.
Solavancos da história
O romance entre os dois é conturbado pelos solavancos da história polonesa e europeia da década e meia seguinte, num circuito que inclui Varsóvia, Praga, Berlim, Zagreb, Paris e Moscou. Os encontros e desencontros do casal reverberam não apenas o conflito entre capitalismo e comunismo, anunciado desde o título, mas também entre arte e política, cultura popular e cultura oficial, desejo e pragmatismo.
Mas o feito do diretor Pawlikowski, a meu ver, é o de centrar seu foco no corpo e na alma dos personagens centrais, em vez de torná-los meros veículos para a exposição de ideias gerais. É, de fato, uma história de amor que se conta ali, e sentimos sua pulsação nos gestos, na orquestração dos olhares, nas inflexões de voz dos esplêndidos protagonistas.
Como em seu longa anterior, Ida (2013), Pawlikowski filma em preto e branco, num formato de tela quase quadrado (1,37:1), predominante no cinema dos anos 1930 e 1940, hoje praticamente abandonado. Essas opções permitem ao mesmo tempo uma certa depuração da imagem e lhe conferem um aspecto deliberadamente “obsoleto”. Mas haverá quem as considere pura afetação.
Música e narração
A música, evidentemente, é um elemento condutor da narrativa, e responsável por alguns de seus momentos mais inspirados. Contraste-se, por exemplo, o início do filme, em que a pesquisa de canções populares tradicionais no interior da Polônia, é filmada quase como um documentário etnográfico, em planos fixos, e o vertiginoso plano-sequência em que, ao som de “Rock around the clock”, uma embriagada Zula sai dançando pelo salão esfumaçado de um clube parisiense.
Num filme que condensa em tão pouco tempo (menos de 90 minutos) uma história tão longa e atribulada, a caracterização dos ambientes teria que ser bem marcada, quase gráfica, e de fato é. As ruas noturnas da Berlim já dividida, mas antes da construção do muro, condensam um misto de ameaça e frisson de liberdade que só o cinema pode expressar de modo tão imediato. Num parêntese poético-metafísico, uma igreja destruída na guerra, no interior da Polônia, é palco de duas cenas decisivas, bem separadas no tempo, e suas imagens remetem a Tarkovsky. No mais, apartamentos parisienses, celas de prisão polonesas, tudo é composto em traços fortes, imediatamente legíveis.
O mesmo procedimento faz com que os personagens secundários – incluindo o burocrata Kaczmarek (Borys Szyc), terceiro vértice do triângulo amoroso – sejam um tanto esquemáticos em comparação com o par central. Inevitável talvez, numa versão tão compacta de uma narrativa que teria material para toda uma série.
Não deixa de ser significativo que Guerra Fria – indicado aos Oscars de filme estrangeiro, direção e fotografia – revisite em tom de tragédia uma polarização político-ideológica que renasce com força hoje no mundo, por conta do recrudescimento de uma extrema-direita truculenta e anacrônica, para a qual o comunismo parece continuar sendo um fantasma que ronda o planeta.
Vice
Curiosamente, outro concorrente a uma porção de Oscars, o norte-americano Vice, de Adam McKay, de certa forma traça a gênese desse renascimento de uma direita belicista e antidemocrática nos Estados Unidos pelo menos desde a década de 1970.
Tal como mostrada no filme, a carreira do brilhante e maquiavélico Dick Cheney (vice do presidente George W. Bush entre 2001 e 2009) ilumina as entranhas dessa vertente que vem desde Nixon/Ford nos anos 1970, passa por Ronald Reagan e por Bush pai e Bush filho até desembocar nessa figura grotesca que é Donald Trump. O discurso é sempre o mesmo: enxugar o estado, privatizar tudo, afastar imigrantes, cancelar programas sociais, combater o terrorismo – e taxar os ricos nem pensar. Soa familiar?
Mais do que o louvável tour de force de Christian Bale, engordado e envelhecido para encarnar Cheney, o que me parece mais interessante em Vice é seu distanciamento crítico, sua construção autoirônica. Do primeiro letreiro que aparece na tela, dizendo que o filme se baseia em fatos “mais ou menos verdadeiros”, ou coisa que o valha, até a piada metalinguística pós-créditos finais, há toda uma tentativa de brincar com a representação do real e mostrar o caráter pouco confiável da narração.
É quase o contrário do que faz Michael Moore, que em seus documentários manipula ostensivamente seu material para construir uma “verdade”. Em Vice a manipulação se autodenuncia, a tomada de posição é assumida e ironizada – e a verdade continua em disputa.
Duas observações finais: quase tão importante quanto Cheney é seu parceiro e mentor Donald Rumsfeld (o ótimo Steve Carell), outra raposa dos bastidores; o título original permite uma dupla leitura, já que vice, em inglês, é também vício, imoralidade, depravação. Talvez esteja aí, nesse trocadilho, o resumo mais claro da visão que os realizadores do filme têm do universo retratado.