A mostra As Câmeras de Bodanzky está em cartaz no cinema do IMS Paulista em outubro.
É difícil explicar a felicidade que é restaurar um filme que, desde que viu a luz, 50 anos atrás, marcou milhares de pessoas. Trazê-lo de volta aos cinemas em outro tempo, com uma riqueza de detalhes inédita, para então redescobri-lo, é um privilégio sem tamanho. Devo isto a Orlando Senna, codiretor de Iracema, meu mestre, amigo e parceiro da vida inteira.
Confesso que não compartilhava da unanimidade em torno do filme. O vi na Escola de Cinema de Cuba (EICTV) – que Orlando ajudou a fundar e dirigiu por muitos anos –, como quem lê um romance obrigatório. Até pouco tempo, nunca tinha embarcado pra valer no filme.
Mas os caminhos da preservação audiovisual são meio mágicos e povoados por anjos. Um dia, Jorge Bodanzky me telefonou por engano, achando que falava com sua filha, e eu, que acabava de saber de um edital internacional de preservação, fiquei sabendo que os negativos originais do filme estavam na ZDF, televisão alemã, caminho das pedras que eu já tinha percorrido no resgate de Cinema Novo, curta-metragem de meu pai. Não fomos contemplados no edital, mas recebi um convite para fazer a cobertura audiovisual do projeto Bodanzky, 50 anos de Amazônia, que pretende levar seus filmes por rio e por terra aos lugares onde foram produzidos. Assim, passei a ter uma convivência quase diária com Bodanzky.
Hoje em dia, o cineasta registra tudo com celular. Segundo ele, isso cria uma relação de igual para igual com quem é filmado, em que “ninguém se sente explorado, porque é uma tecnologia que todos têm”. Seus ensinamentos sobre como trabalhar com leveza e liberdade, dessacralizando nosso ofício e sua própria figura de criador, acabaram fazendo com que eu me rendesse a seu projeto de cinema.
A princípio, pensei que este seria só mais um trabalho, nesta área de que gosto muito e em que me especializei. Até que entendi que não estava mais medindo esforços para recuperar esses filmes, da mesma forma que, 20 anos antes, Maria e Antônio, meus irmãos, e eu restauramos as obras completas de nosso pai, Joaquim Pedro de Andrade, reunindo materiais dispersos no mundo inteiro. Porque sem bons materiais, não há boas restaurações.
Para que Iracema estivesse linda a tempo dos festejos do 50º aniversário de sua criação, a digitalização e o restauro do filme teriam que ser feitos na Alemanha. Eu conhecia bem Martin Köerber, restaurador da obra de Fritz Lang, e pedi que fosse o supervisor do restauro junto à ZDF, que não permite que seus materiais saiam da Europa.
Por outra feliz coincidência, na mostra de aniversário do programa Das kleine das Fernsehspiel, da ZDF, que produziu quatro dos filmes de Bodanzky, Iracema foi eleito o melhor filme dos anos 1970, e o cineasta foi convidado para apresentá-lo em Berlim. Lá, Martin Köerber e Bodanzky ficaram impressionados com a qualidade do som projetado. Devemos a Merle Kröger, curadora da mostra, a descoberta, nos arquivos da ZDF, dos magnéticos de som de Iracema, bem como dos outros três filmes. Matrizes analógicas, praticamente intocadas, capazes de reproduzir uma infinidade de detalhes da trilha sonora, antes inaudíveis devido às limitações técnicas da época.
Admiradores entusiastas da obra de Bodanzky doaram os recursos que garantiram esta restauração, que não alcançaria tanta excelência sem a parceria e o empenho de nossa equipe. Em especial de Débora Butruce, preservadora audiovisual da Mnemosine; José Luiz Sasso, da JLS; Denise Miller, da Link Digital; e Aarão Marins, da Mapa Filmes. O Departamento de Artes e Design da PUC-Rio nos facilitou o download de uma enorme quantidade de arquivos, e contamos, é claro, com o apoio essencial da Cinemateca Brasileira. Agradeço muito pela ajuda de seus trabalhadores. A atuação da equipe do Cinema do IMS em todo este processo tem sido da maior importância. Toda nossa gratidão a Marcia Vaz e Kleber Mendonça Filho.
Recuperar as cores dos filmes ao lado de Bodanzky, ouvir as histórias das filmagens, entender seu método para atiçar o real com a ficção, tem sido um privilégio. Foi emocionante ver surgirem na procissão do Círio de Nazaré aquelas centenas de rostos, cada um com sua verdade, em meio a uma alucinante profusão e variedade de ex-votos. Perceber as sutilezas da interpretação de Iracema, pela então adolescente Edna de Cássia. Constatar o gênio de Conceição Senna, não só na atuação como na escolha dos microvestidinhos que Iracema nunca repete e ninguém jamais saberá como couberam em sua singela malinha.
Além de Iracema, uma transa amazônica, o projeto vai restaurar Terceiro milênio, obra-prima do cinema direto, que acompanha o visionário senador Evandro Carreira em sua campanha eleitoral pelo Solimões abaixo, em meio à exuberância dos rios e da floresta nos anos 1980. “A Amazônia é água em absurdo!”, proclama, em meio a uma torrente de superlativos. “Ou tu me decifras, homem do terceiro milênio, ou te devorarei com a devastação que será a futura Amazônia!”
Bodanzky realizou 16 filmes na região num arco de 50 anos. O mais recente, Amazônia, a nova Minamata?, diversas vezes premiado, trata da contaminação por mercúrio causada pelo garimpo. Aos 81 anos, Jorge Bodanzky continua a usar seu cinema para a conscientização das aldeias indígenas, quilombos e comunidades ribeirinhas, bem como dos políticos e da sociedade civil organizada.
Sua obra, vista em conjunto, revela a complexidade e a riqueza da Amazônia, que poucos chegam a conhecer e que ninguém entende inteiramente. Como não podemos restaurar a floresta em 16K, colher frutos de árvores 3D e fazer um back-up do bioma numa gigantesca nuvem (que não desabe em chuvada), é preciso que essa visão vasta, profunda e sensível da Amazônia possa chegar a muitos olhos, mundo e tempo afora. Felizmente, a imagem de Evandro Carreira de sunga, discursando entre as vitórias-régias, persiste em minhas retinas, acima das imagens da paisagem desolada que é o leito seco do rio Solimões de agora.