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A fabricação do milagre

24 de novembro de 2022

O milagre, de Sebastián Lelio, em cartaz na Netflix, é um filme de extrema atualidade, embora ambientado na Irlanda de meados do século XIX. Dez ou vinte anos atrás, seu entrecho – baseado em romance de Emma Donoghue – talvez soasse datado e obsoleto, mas o fanatismo religioso e o negacionismo científico que ganharam fôlego nos últimos tempos lhe conferiram vigor e contundência.

É a história de Elizabeth Wright (Florence Pugh), jovem enfermeira de Londres enviada em 1862 a uma aldeia nos confins da Irlanda para, em revezamento com uma freira (Josie Walker), observar um estranho fenômeno: Anna O’Donnel (Kila Lord Cassidy), uma garota de doze anos, vive em jejum permanente e se mantém aparentemente saudável.

 

Fé e fome

Sua última refeição, segundo consta, foi a hóstia que consumiu quatro meses antes, na comunhão. “Água e farinha”, anota a enfermeira em seu caderninho. “O corpo de Cristo”, corrige Kitty (Niamh Algar), a irmã mais velha de Anna. Nesse diálogo está resumido o conflito central do filme, entre religião e ciência, ou melhor, entre fé e razão. Uma tradução mais adequada do título original (The Wonder) seria O prodígio, preservando a ambiguidade possível entre esses dois polos. O milagre puxa para um lado, ainda que ironicamente.

Há algo de esquemático na apresentação inicial dessa polarização, na oposição entre a enfermeira e a freira, mas o esquema é tornado mais complexo ao longo da trama, até porque o próprio médico do vilarejo (teoricamente o representante da ciência) adere à tendência local para a leitura mística do fenômeno. Além disso, toda a narrativa se desenrola do ponto de vista da protagonista Elizabeth, marcando uma tomada de posição clara do diretor.

O pano de fundo histórico é o ressentimento irlandês com a opressão exercida pela Inglaterra, o que acaba por recrudescer a fé católica local. E não deixa de ser irônico que na Irlanda flagelada pela fome uma menina se destaque justamente por viver sem se alimentar.

 

Drible no academicismo

Em termos de produção, é o trabalho mais ambicioso do chileno Sebastián Lelio (o mesmo de Uma mulher fantástica e Desobediência), que se moveu com desenvoltura na cuidadosa reconstituição de época, evitando sucumbir ao peso do academicismo.

Concorrem para isso o prólogo e o epílogo metalinguísticos, mostrando o set e as condições de filmagem e estabelecendo um distanciamento crítico com o que é narrado. Claro que isso não é novidade, pelo menos desde Brecht e Godard, mas é sempre saudável lembrar ao espectador que ele está diante de uma realidade fabricada.

Além disso, Lelio evitou a armadilha em que caem tantas produções de época, que é a de tudo submeter à verossimilhança da reconstituição e ao esplendor da direção de arte. Aqui, ele inverte a equação: a construção visual do filme, com sua iluminação de pintura barroca (sobretudo nas cenas internas) e sua minuciosa composição cromática, ajudam a ressaltar o sentido central do relato.

Num ambiente sombrio, puxando para o ocre, o marrom e o cinza, o vestido azul-celeste da enfermeira Elizabeth se destaca como um corpo estranho, um grito de cor, um respiro num mundo quase monocromático. Num momento epifânico do filme, uma rara abertura do céu nublado espalha o azul pelos campos, como o verde dos olhos que se derrama pela plantação na célebre canção de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.

Essa poesia visual, à parte o prólogo e o epílogo mencionados, mantém-se nos limites da narrativa clássica, mas usa seus recursos de forma criativa e expressiva, impedindo a queda na banalidade tão comum nesse tipo de produção. Mesmo o desfecho um tanto forçado e edificante não chega a comprometer o conjunto da obra.