Não muito diferente da tela retangular numa sessão de filme, um par de óculos lembra o Cinema. O Cinema propõe um foco, um quadro a partir do qual veremos algo que talvez não estivesse sendo percebido tão bem. Os óculos achados em caixas num beco de Los Angeles em Eles vivem (They Live, 1988), de John Carpenter, têm essa função no plot de “sci-fi e aventura de invasão alienígena” com subtextos sociais agudos: não só oferecem nitidez e boa imagem, mas revelam os segredos das ruas, da paisagem urbana e das pessoas. As reações dos personagens são perfeitamente estarrecidas, e logo o espectador poderá lembrar da sua própria relação com a realidade da sua vida.
Para quem nunca viu, descobrir Eles vivem em 2017, essa joia de Carpenter, pode ser uma sensação renovadora. Revê-lo, um prazer grande, uma obra de gênero com tantas ideias. Quando foi lançado, há 29 anos, a mídia analógica e eletrônica dos jornais, revistas, rádio e TV ainda não sonhava em transformar-se na tempestade de informação e intriga digital que temos hoje.
Nosso lixo midiático hoje propõe uma luta constante e inédita entre noções de verdade que talvez aprovemos, e quantidades industriais de mentira impostas com a ajuda de bilhões de handsets, telas de todos os tamanhos, vídeos que somos todos hoje capazes de fazer (e de duvidar da veracidade deles), da augmented reality vista ao vivo com coordenadas de GPs. “Vidi Well, Vidi Well…”
Os óculos de hoje ficaram ainda mais sofisticados, e Eles vivem estava certo como comentário social e visão de mundo. De fato, o filme, como fruto da cultura industrial e pop (o cinema), tornou-se ícone, espécie de versão mais realista e de esquerda de Matrix, lançado 12 anos depois, já em plena era da internet.
Imagens do filme de Carpenter (que também assinou o roteiro como Frank Armitage, adaptando um conto de Ray Nelson) são hoje consumidas como traduções jocosas e afiadas da realidade na qual estamos inseridos, com especial destaque para a participação de Eles vivem na campanha presidencial que viu Trump ser eleito à presidência dos Estados Unidos.
Vídeos, memes do filme com um Trump-caveira (cabeleira laranja intacta), renovaram o interesse por Eles vivem num nível comparável à referência política e social de Vampiros de almas (Invasion of the Body Snatchers, 1956), de Don Siegel, nos anos 1950, a parábola sci-fi que fingia não ser sobre o anticomunismo da época nos EUA.
Se Matrix era um empolgante filme de ação sobre uma realidade paralela imposta, o tom parecia almejar a alma moderna adolescente dos que não são compreendidos por um mundo adulto boring e reacionário.
Em Eles vivem, nossos heróis são adultos, todos pobres, trabalhadores desempregados e moradores de rua, uma escolha de personagens principais com os quais o espectador médio é levado a se identificar, radical para uma produção americana, mesmo uma feita fora do esquema dos estúdios. E nosso herói é um peão de construção (Roddy Piper, falecido em 2015, aos 61 anos).
É nesse grupo de gente perseguida por um estado policial que surge a compreensão do que realmente há de errado no mundo. Uma invasão de alienígenas prega o consumo como religião, e a norma é baixar a cabeça para os grandes poderes sem questionamentos. Isso será combatido num enredo de resistência, tiro e explosões com a escala do Cinema B que os valores de produção americanos eram capazes de nos dar na época.
A química do tempo que atua sobre Eles vivem é das mais felizes. Como cinema de gênero, é divertido, engraçado e surpreendente, sua personalidade B amplificada pela imagem anamórfica Panavision e os efeitos ópticos que não fazem mais parte do vocabulário contemporâneo. Como “Cinema Político”, é de uma acidez e precisão que parecem fugir de filmes autodenominados “políticos” e “sérios”, pois lhes falta o bom humor e, principalmente, a raiva para pintar retrato tão verdadeiro e tão sentido do estado do mundo.
Kleber Mendonça Filho é coordenador de cinema do IMS