Paloma, de Marcelo Gomes, que estreia nesta quinta-feira nos cinemas do IMS e em outras salas do país, põe em cena as relações perigosas entre corpo e sociedade. Mais concretamente, entre um determinado corpo e uma determinada sociedade. O corpo é o da personagem-título, Paloma. A sociedade é a população de uma pequena cidade do interior de Pernambuco e, por extensão, de toda a região. Brasil profundo.
A primeira cena, com imagens extremamente aproximadas, é de dois corpos entrelaçados na cama, praticando um sexo terno e intenso. Na confusão de peles, pelos e cabelos, não é possível definir o gênero dos dois personagens. Mas dá para perceber que se amam, e por enquanto isso basta.
Só na cena seguinte, o banho de Paloma, descobrimos que se trata de uma travesti. O parceiro com quem a vimos na cama é o pedreiro Zé (Ridson Reis), com quem ela mantém um relacionamento estável. E em pouco tempo ficamos sabendo mais sobre Paloma: que trabalha na colheita de mamão, que tem uma filhinha de sete anos, que é analfabeta e devota do Padre Cícero e, principalmente, que sonha com um casamento na igreja, de véu e grinalda.
Mundo real
Nessa progressão narrativa, os corpos indefinidos e anônimos da primeira cena assumem nomes, identidades e papeis sociais, com todas as constrições correspondentes. O movimento, de certa forma, é análogo ao de Adão e Eva expulsos do paraíso e lançados ao mundo real do trabalho, da natureza inóspita e das relações sociais. Do princípio do prazer ao princípio da realidade.
E o mundo real é duro. Sobretudo o mundo em que vivem Paloma e Zé, personagens pobres, periféricos e transgressores da norma. No salão de beleza de uma amiga de Paloma, uma cliente faz troça do seu desejo de casar na igreja. É um primeiro sinal das barreiras que a protagonista enfrentará para realizar seu sonho.
Mas Paloma é valente. Se o padre local diz não poder realizar o casamento, ela recorre ao papa. Não é difícil prever a resposta do Vaticano. Os obstáculos vão surgindo como que em círculos concêntricos, mas ela não desiste.
Um melodrama ou telenovela convencional, de “mensagem edificante”, terminaria com o final feliz do sonho realizado, para catarse da plateia. Teria também uma protagonista sem contradição e sem mácula. Mas Marcelo Gomes sabe que a vida não funciona assim e que os seres não são unidimensionais. Seus personagens são movidos por desejos e freios dos quais nem sempre eles próprios têm consciência.
Mais do que a mera denúncia de uma sociedade repressora e hipócrita, Paloma ganha dimensão de tragédia ao mostrar a introjeção, no indivíduo, dos valores dessa sociedade. O afastamento entre os amantes da primeira cena, ao ponto do estranhamento e da hostilidade, é resultado de um processo ao mesmo tempo íntimo e coletivo, quase uma confirmação do terrível verso de Manuel Bandeira: “Porque os corpos se entendem, mas as almas não”.
A mãe
Outro drama brasileiro de grande força que está entrando em cartaz é A mãe, de Cristiano Burlan. Sua sinopse cabe em um par de linhas: na periferia de São Paulo, a mãe solo Maria (Marcelia Cartaxo), sai à procura do filho adolescente, Valdo (Dunstin Farias), que saiu de casa de manhã e não voltou.
Desse périplo tão comum a mães pobres das metrópoles brasileiras o cineasta constrói uma crônica urbana que se eleva à tragédia graças em grande parte à presença impressionante de Marcelia Cartaxo. Seu corpo miúdo e aparentemente frágil revela-se pura fibra, em permanente estado de tensão prestes a explodir. Em sua determinação inabalável para encontrar o filho, vivo ou morto, Maria ganha ares de heroína trágica grega.
Mas o que torna A mãe um filme particularmente vivo e vibrante é a maneira como Burlan articula o destino de seus personagens ao ambiente da cidade. São odisseias paralelas, em momentos diferentes: a de Valdo, que sai com um amigo para fazer um teste na “peneira” do Corinthians, e a de Maria, inicialmente para vender óculos escuros piratas num calçadão do centro, depois por delegacias e IMLs em busca do filho.
Na primeira cena, cada um deles, mãe e filho, aparece caminhando pelo viaduto Santa Efigênia, no vale do Anhangabaú, à noite. Só que eles estão em momentos diferentes da história, como saberemos depois. Essa mistura de tempos é um dos acertos do filme, evitando a monotonia e a linearidade.
Burlan tem “lugar de fala” para tratar de seu tema: cresceu na periferia paulistana e perdeu pai, mãe e um irmão assassinados. O retrato que faz das relações de poder entre o crime e a polícia na favela é bastante convincente e assustador.
O tom da narrativa é predominantemente seco, recusando o melodrama e a espetacularização da violência e da miséria. Quase não há música. O ponto fraco, a meu ver, é a inserção um tanto desajeitada de uma mensagem militante quando a protagonista procura uma ONG de mães que buscam os filhos desaparecidos (geralmente mortos pela polícia). Por mais nobre que seja a causa, ela parece entrar a fórceps na estrutura do filme, e de modo desnecessário. Já tinha dado para entender que, na favela, a ditadura militar nunca terminou.