A população mundial está envelhecendo rapidamente, e o Japão é um dos lugares em que o fenômeno atinge níveis mais preocupantes. Com base nesse fato, a cineasta japonesa Chie Hayakawa concebeu uma fantasia sombria e perturbadoramente realista, Plano 75, seu primeiro longa-metragem.
Inspirada pela obra-prima A balada de Narayama (1983), de Shohei Imamura, em que os idosos de uma aldeia rural, no século 19, eram levados à montanha para morrer sozinhos, a diretora atualizou o tema para um futuro próximo, tão próximo que é igualzinho ao presente – o que torna tudo mais assustador.
Incentivo à eutanásia
Preocupadas com uma onda de “crimes de ódio contra idosos” e com a oneração dos cofres públicos (leia-se a lucratividade do capitalismo neoliberal), as autoridades nipônicas instituem o Plano 75, um programa que estimula os cidadãos acima de 75 anos a submeter-se gratuitamente à eutanásia.
Sobre esse pano de fundo, acompanhamos o drama de um punhado de personagens, em especial da solitária Michi Kakutani (Chieko Baishô). Aos 78 anos, ela é demitida do hotel onde trabalha como camareira. Para piorar, seu prédio será demolido e ela precisa encontrar outro apartamento para alugar. Mas as imobiliárias exigem dos idosos dois anos de aluguel adiantados. Ela sai então numa dolorosa busca por um novo emprego, terminando como sinalizadora de trânsito numa via em obras. Ao mesmo tempo, é pressionada por todos os lados (anúncios, panfletos, conselhos de amigas) a aderir ao Plano 75.
O tom geral da narrativa é apropriadamente elegíaco, melancólico, com uma predominância de cenas na penumbra, longos silêncios e cores foscas tendendo para o verde musgo, em contraste com o branco asséptico e o azul diáfano da clínica de eutanásia.
Humano e desumano
Mas isso não significa que seja um filme deprimente. O que o livra do baixo astral, a meu ver, é a presença de alguns personagens jovens que, em algum momento, transgridem os limites profissionais que lhes são impostos e desenvolvem um vínculo pessoal, afetivo, com os idosos com que se deparam. É esse encontro do humano no seio de um sistema desumano que confere a Plano 75 seu lirismo e sua poesia.
A atenção aos detalhes da vida cotidiana dos idosos se alterna com o retrato das situações mais diversas: um encontro religioso de uma comunidade filipina, um boliche, um karaokê, o funcionamento interno de uma agência do Plano 75.
Alguns planos de ligação (os pillow shots de que Ozu era mestre insuperável) têm um papel mais poético do que narrativo: as luzes vermelhas piscando nas costas do colete de Michi quando ela orienta o trânsito noturno, os pingos de chuva e de neve no para-brisa do carro do jovem Hiromu (Hayato Isomura) quando leva o velho tio para ser cremado, a silhueta de uma mão idosa na contraluz de uma janela, o pôr-do-sol nas montanhas na bela cena final. São momentos em que o tempo dá a impressão de se condensar, adquirir peso e volume.
O tema da violência contra os idosos, apenas mencionado no prólogo, parece saído do romance Diário da guerra do porco (1969), do argentino Adolfo Bioy Casares, que antecipa em mais de meio século o problema atual. O mundo parece cada vez mais atormentado pela pergunta: o que fazer com os velhos?
Distopias
E não deixa de haver pontos de contato entre Plano 75 e algumas distopias brasileiras recentes, como Medusa, de Anita Rocha da Silveira, Divino amor, de Gabriel Mascaro, e Medida provisória, de Lázaro Ramos e Flávia Lacerda. Em todos eles há a exacerbação de tendências e tensões já presentes na (des)ordem social. Não são propriamente futuristas. Como dizia o narrador do antigo seriado Os invasores, o pesadelo já começou – e essa mera lembrança denuncia que estou no time dos idosos.
Em tempo: Plano 75 foi a escolha do Japão para tentar uma vaga no Oscar de 2023. Ganhou menção honrosa no festival de Cannes de 2022. No Brasil, está sendo lançado pela distribuidora Sato, especializada em produções nipônicas, com ênfase, ironicamente, em animações e filmes de super-heróis.