Para que não passe batido o cinquentenário do golpe que derrubou Salvador Allende e instaurou no Chile uma das ditaduras mais sangrentas do continente, chega ao streaming na Mubi um filme estranho e perturbador: Post mortem (2010), de Pablo Larraín.
A ditadura de Pinochet voltaria a ser abordada por Larraín no thriller político No (2012) e na alegoria de terror O conde (2023). Post mortem, a começar do título, é um drama lúgubre. Conta a história de um funcionário de necrotério, Mario Cornejo (Alfredo Castro), que se apaixona por sua vizinha, a dançarina de teatro de variedades Nancy Puelma (Antonia Zegers), envolvida com um grupo de apoiadores do governo popular de Allende.
O termo “drama” talvez seja inadequado. Larraín desdobra seu relato sem ênfase ou apelos sentimentais, de modo distanciado, dificultando a identificação emocional do espectador até mesmo com seu protagonista, o opaco Mario, que parece atravessar os acontecimentos com a mesma passividade anestesiada com que exerce seu trise ofício.
Atmosfera fúnebre
Todos os recursos estéticos são mobilizados para configurar a atmosfera funérea da narrativa: a música discreta, as cores esmaecidas, a mecânica dos gestos, a banalidade dos diálogos. Pálidos, exangues, os personagens frequentemente parecem se mover como sonâmbulos ou mortos-vivos.
Enquanto a dupla de protagonistas pratica seu desajeitado jogo erótico de atração e repulsa, a catástrofe histórica se desenrola fora do quadro, até que os cadáveres começam a abarrotar as salas, corredores e escadas do necrotério.
A mistura arguta de tempos narrativos permite a inserção, ainda na primeira parte do filme, da autópsia de uma mulher que só fará sentido depois da perturbadora sequência final. Não cabe aqui nenhum spoiler.
Pode-se supor, também, que uma parte do que vemos, se não tudo, é produto de sonho ou fantasia do protagonista Mário Cornejo. O que é real, sem margem para dúvida, é a pilha de mortos. Post mortem, em suma, é a história como pesadelo. Um pesadelo que de tempos em tempos ameaça voltar, lá como aqui.
Cinema contra ditadura
Numa época em que, no Chile e em outros países do continente, tenta-se deturpar a história e reabilitar a figura nefasta de Pinochet, talvez seja conveniente conhecer ou revisitar o que o cinema produziu de mais marcante a respeito.
O monumental A batalha do Chile (1975-79), documentário em três partes de Patricio Guzmán, está disponível de graça, com legendas, no YouTube. É um registro eletrizante da mobilização popular durante o governo Allende e do crescimento das tensões sociais e geopolíticas que levaram ao golpe de 11 de setembro de 1973.
O drama ficcional Machuca (Andrés Wood, 2004), narra a tragédia histórica chilena sob o olhar de dois meninos de classes sociais distintas. Está também no YouTube, gratuito e com legendas.
Na plataforma Belas Artes à la carte está disponível Santiago, Itália (2018), excelente documentário de Nanni Moretti que traça um quadro vivo do golpe a partir dos perseguidos políticos que se refugiaram na embaixada italiana na capital chilena.
No, do próprio Larraín, foi lançado em DVD pela Imovision, com o subtítulo Adeus, Sr. Pinochet. Estrelado por Gael García Bernal, reconstitui a campanha publicitária pelo “não” no referendo de 1988 sobre a permanência de Pinochet no poder.
Enfim, na luta contra a barbárie sempre à espreita, o cinema tem feito a sua parte.