A mostra Billy Woodberry em retrospectiva acontece no cinema do IMS Paulista de 6 a 30/6. Na abertura, após a exibição de Abençoe seus pequeninos corações, o cineasta participa de um debate com a autora deste texto.
A propósito de A bolsa e Abençoe seus pequeninos corações[1]
Há uma energia vital no cinema de Billy Woodberry que declara de chofre a exuberância da sua pulsação. No travelling lateral da sequência de abertura de A bolsa (The Pocketbook, 1980), a imagem do bando de miúdos em correria no cenário dos vagões ferroviários tem o ritmo endiabrado dos pequenos protagonistas, e a cadência folk-blues que vem da banda sonora, “Red Bird”, por Lead Belly (Huddie William Ledbetter, ou o “King of the Twelve-String Guitar” que Kurt Cobain celebraria em versão rock com os Nirvana, “Where Did You Sleep Last Night”). No plano sonoro inicial a negro de Marseille après la guerre (2015), os passos militares e o canto colectivo acompanham a legenda que vem inscrever-se a branco, remetendo para a força pungente do retrato dos trabalhadores das docas marselhesas no pós-Segunda Guerra Mundial, maioritariamente de ascendência africana, em tributo ao escritor e realizador senegalês também estivador e activista sindical, Ousmane Sembène.
Em ambos os filmes, no preto e branco granuloso da fotografia assinada por Charles Burnett, Mario DeSilva e Gary Gaston e, no caso do segundo, no preto e branco da colecção de imagens de fotógrafos sindicalistas, os planos iniciais funcionam como prólogo vigoroso. A bolsa parte de um conto do poeta americano Langston Hughes (“Thank You Ma’am”, 1958), figura de relevo da chamada jazz poetry e da nova-iorquina Harlem Renaissance, como ficou cunhado o movimento intelectual, social e artístico vindo do New Negro Movement dos anos 20 do século XX.
Devedor da inspiração do primeiro romance de Sembène, Le docker noir (1956), Marseille après la guerre é um foto-filme que desembarca numa colecção de imagens de arquivo dos estaleiros da cidade portuária francesa, encontrada nos arquivos da biblioteca da universidade de Nova Iorque no curso de uma investigação de Woodberry sobre o National Maritime Union, sindicato de trabalhadores fundado em 1937. Exclusivamente composto por imagens fotográficas, na linha do seminal A pista (La Jetée, 1962), de Chris Marker, o foto-romance de temporalidade cinematográfica. De Now (1965), o célebre filme de montagem de Santiago Álvarez em que imagens fotográficas e de actualidades invocam a violência policial e racial nos Estados Unidos ao som de uma protest song de Lena Horne, Marseille après la guerre tem uma narração off cujo texto é a ponte das várias pontas em que o filme pega, sendo também musical no desenho de som e na canção. O tema é “Mademoiselle Marseille”, de Mossu T e lei Jovents, que explode no desfecho.
A bolsa e Marseille après la guerre, os dois curtos filmes de Billy Woodberry realizados com o intervalo de 35 anos que distingue a sua estreia na realização, antes da longa de ficção Abençoe seus pequeninos corações (Bless Their Little Hearts, concluído em 1983 no contexto de escola da UCLA, no mesmo preto e branco 16 mm do curta-metragem anterior), e o rumo contemporâneo do seu trabalho, que contempla And When I Die, I Won’t Stay Dead (2015, distinguido na edição desse ano do Doclisboa) e em que cabe o recente A Story from Africa (apresentado como videoinstalaçãoem 2018), reflectem um círculo concêntrico de preocupações e afinidades mas também um curioso e consistente percurso de encadeamentos, de momento concentrado num trabalho que a produtora portuguesa Divina Comédia anuncia sobre o poeta e activista angolano Mário Pinto de Andrade e o papel que desempenhou nos movimentos de libertação africanos sob domínio colonial português.
A história faz-se em retrospectiva, é sabido. A história do cinema de Billy Woodberry começa ficcional, sob a influência de Charles Burnett, que, além da colaboração em A bolsa, é autor do argumento e da fotografia de Abençoe seus pequeninos corações, em que as personagens dos três filhos Banks são interpretadas pelos sobrinhos de Burnett, e em que a mãe (Andais Banks) é a actriz de Burnett em O matador de ovelhas (Killer of Sheep, 1977). No filme de Woodberry, Kaycee Moore contracena com Nate Hardman (Charlie Banks), e o habitat da família é a mesma comunidade afro-americana urbana e pobre do centro de Los Angeles. Na realidade, longo tempo afastados de uma visibilidade que fizesse inteira justiça a um e outro, próximos na sensibilidade, O matador de ovelhas e Abençoe seus pequeninos corações configuram hoje uma determinante dupla de filmes do cinema independente americano ditado por um gesto simultaneamente cinematográfico, social e político. Mais: são ambos títulos fundamentais do movimento que viria a ser designado como a L.A. Rebellion, que a partir de finais dos anos 1960 (Several Friends, Burnett, 1969) e durante cerca de 20 anos agrupa uma série de estudantes africanos e afro-americanos da UCLA, especialmente atentos à realidade das comunidades negras. Corria a época em que o Movimento pelos Direitos Civis dos Negros respirava a intensidade dos acontecimentos da Revolta de Watts de 1965.
Na Faculdade de Cinema, Teatro e Televisão da Universidade da Califórnia, os ecos não foram só férteis, foram poderosos e continuados no tempo. Billy Woodberry chegou lá no início dos anos 1970, já Burnett, antes de ser mentor e ainda de algum modo um estreante, era uma figura influente. De origem texana, conhecedor do cinema neorrealista italiano, da Nova Vaga francesa, do cinema americano que se fazia nas ruas de Nova Iorque, mas também dos filmes realizados em Cuba, Brasil, na Índia e em África, Woodberry (nascido em 1950, em Dallas) seria uma figura determinante dessa colectiva L.A. Rebellion. Mais tarde, o estudante e realizador faz-se professor de cinema no CalArts (California Institute of the Arts), onde desenvolve novas afinidades electivas com Thom Andersen, Allan Sekula, James Benning ou Hartmut Bitomsky, aliás reflectidas na sua filmografia extrarrealização: participa do elenco de When It Rains (Charles Burnett, 1995), é o narrador de Red Hollywood (Thom Andersen e Noël Burch, 1995) e de Four Corners (James Benning, 1998), é convocado por Sekula como um dos artistas da instalação multimédia Facing the Music (2005) em torno da construção do Walt Disney Concert Hall desenhado por Frank Gehry para a baixa de L.A., concebendo The Architect, the Ants and the Bees, de que se diz medir o impacto do projecto na cidade, revelando, por outro lado, a carga racial da força de trabalho que o construiu.
Cena de Abençoe seus pequeninos corações, de Billy Woodberry
Quando retoma os seus projectos de maior fôlego, fá-lo na via documental de And When I Die, I Won’t Stay Dead, retratando a vida e a obra do poeta e activista Bob Kaufman (1925-1986), o “Rimbaud americano”, de alma verdadeiramente beatnick, radicalmente beatnick, em que se reconhece “uma das vozes esquecidas da beat generation”. Porventura a sua voz mais radical. É o filme sobre o errante Kaufman, ele próprio marinheiro e sindicalista de juventude (foi membro do National Maritime Union), cuja poesia Woodberry conhecera nos anos 1970 e a que dedica um aturado trabalho de investigação anos mais tarde, que há-de levá-lo ao material fotográfico que está na origem de Marseille après la Guerre. Nas suas próprias palavras, em entrevistas recentes, encontra no cinema documental – e, palavras que não são dele, no que podem entender-se como declinações “experimentais” – uma dimensão “retórica, poética, analítica, discursiva, reflexiva”. Não que essa dimensão esteja exactamente ausente da narrativa prosseguida na singularidade dos primeiros filmes.
No início do fio da meada, a fulgurante miniatura de A bolsa, que não fala de um livro de bolso, mas de uma mala (quase) roubada pelo pequeno protagonista que se destaca do bando de miúdos do início para se fazer às ruas da cidade e acabar no apartamento da senhora que tenta assaltar, destila já a sensibilidade de Woodberry à fotografia. O filme junta na dedicatória Langston Hughes e Gladys Woodberry, o cineasta Sidney Meyers e a “fotógrafa de rua” nova-iorquina Helen Levitt. Se na obra inicial de Woodberry transparece o lado trinta por uma linha que anima o bando de A bolsa, transparece também o espírito dos fotógrafos e cineastas de rua americanos para o qual um plano como o dos jorros de água que tornam efervescentes as tropelias dos miúdos remete de imediato. Sim, vêm à ideia Os incompreendidos (Les 400 coups, de Truffaut, 1959) e, claro, O pequeno fugitivo (The Little Fugitive, de Ray Ashlin, Morris Engel e Ruth Orkin, 1953), The Quiet One, de Meyers (1948), In the Street, de Helen Levitt, James Agee e Janice Loeb (1948).
O conto moral em que o filme se volve quando o pequeno assaltante frustrado é confrontado com o “ralhete” da vítima que se recusa sê-lo, fazendo-o de resto pensar na vida, por lhe falar do que lhe custa ganhar a sua, é pontuado pelo plano geral nocturno da cidade, dos seus reclames luminosos, do seu trânsito iluminado pelos faróis dos automóveis. Não uma Broadway by Light, como a de William Klein no esplendoroso estudo da cor do filme de 1958, mas uma cidade recortada a rasgos de luz no preto e branco contrastado. E vemos toda uma linhagem de referências marcar visualmente A bolsa, que, por outro lado, nos acordes de Lead Belly mas também de Thelonious Monk e Miles Davis, respira a música que o cinema de Billy Woodberry também não dispensa desde então – o jazz e o blues, os cânticos espirituais sulistas, a música folk, a vanguarda musical.
Em Abençoe seus pequeninos corações, os elementos voltam a reunir-se para compor uma obra com um universo próprio de força rara, que a consanguinidade com O matador de ovelhas não dilui. O filme começa com a imagem a negro, pelo som, o da música que se ouve durante os largos minutos em que acompanhamos Charlie Banks no centro de emprego, entre formulários, sem sorte, e o seu caminho pelo baldio que o leva a casa, no bairro de Watts, em L.A. – L.A. que “plays itself”. As palavras só surgem depois, já a desolação daquela vida está estampada no filme, vinda do rosto do homem. (Vem à ideia que pode ser o adulto em que o miúdo de A bolsa se tornou.) Aquela família está em apuros, exausta a mãe, deitada na cama, os três miúdos à mercê da angústia silenciosa que por ali paira. O ambiente, rapidamente composto, devolve a crueza de um quotidiano afectado por dificuldades, o desemprego, a pobreza. Dos seus efeitos devastadores, conjugais e familiares na vida de um casal com três filhos pequenos tratará o filme.
Em proximidade com Charlie Banks, que se movimenta pela cidade, os seus exteriores baldios, os seus campos e as águas em que ele pesca, os sítios em que vai fazendo biscates para ganhar uns trocos, mostrando uma urbe que se mistura com um território ainda rural, Abençoe seus pequeninos corações também é um retrato ímpar de Los Angeles. Estamos “no outro cinema”, o que vem de fora dos estúdios de Hollywood, o de um cinema de gente que caminha, de que Thom Andersen fala, sinalizando as representações da cidade mais filmada do mundo (Los Angeles Plays Itself, 2003), quando lembra o movimento neorrealista liderado em L.A. pelos jovens realizadores negros do Sul dos Estados Unidos, citando “Haile Gerima, da Etiópia, Charles Burnett, do Mississippi, Billy Woodberry, do Texas”. Nesse filme, em que há imagens de Bush Mama (Haile Gerima, 1979), O matador de ovelhas e Abençoe seus pequeninos corações, também se nota como os realizadores negros independentes mostraram que a verdadeira crise da família negra é apenas a crise da família da classe trabalhadora, branca ou negra, em que o espírito familiar está sempre em risco porque a ameaça do desemprego está sempre presente.
A working class people que Woodberry filma não é conceptual. É pelo contrário muito concreta, tem os traços, os gestos, os problemas, os conflitos à flor da pele das personagens das quais se aproxima na sua persistência quotidiana, não raro captando pormenores de expressão eloquente. Se as cenas de exteriores concorrem para o retrato da cidade, os interiores são os espaços do drama. E é curioso notar como é quase sempre Charlie quem habita o espaço da cidade, em contraponto a Andais, filmada em interiores, à excepção das cenas em que a vemos varrer uma entrada de casa ou no trajecto de autocarro que nos fazem crer que ganha provavelmente a vida como empregada doméstica. É o trabalho da mulher que leva dinheiro para a casa dos Banks, apesar de o pai se multiplicar nos biscates que pode, contrariando o comentário do barbeiro que o acusa de ser demasiado exigente. E apesar dela própria promover a imagem da dignidade paterna junto dos miúdos na bastante terrível cena que começa com o casal entalado no estreito corredor da casa, com ela a pôr-lhe nas mãos as três moedas que ele em seguida distribui ritualmente pelos três filhos de saída para a missa dominical.
Cena de A bolsa, de Billy Woodberry
As cenas de Abençoe seus pequeninos corações são bastante fortes, tanto no apontamento silencioso da distância que se instalou entre o casal e que está nas cenas deles no quarto (recorrentes, assinalam a rotina e o cansaço), como na cena mais explosiva da longa discussão dos dois na cozinha filmada com câmara à mão, um tour de force do filme que constrói o espaço daquele combate. Ou na sequência que retrata o alcance verdadeiramente destroçado dos cinco membros da família: os olhares vagos, a miudinha de braço envolto em gesso e o pai a desfazer-se em lágrimas sem reprimir soluços, a mãe que o consola como se ele fosse o mais pequeno de todos os que estão sentados à mesa da cozinha. E numa cena tão enxuta como a das torneiras da casa de banho que Charlie fecha com a fúria muda dos seus dois punhos cerrados sobre os manípulos depois de se barbear, e a filha tem de abrir usando uma ferramenta a condizer, desmesurada entre as mãos da pequena.
De algum modo todos condenados, de algum modo todos salvos na dureza de tudo aquilo, na sensibilidade do olhar sobre tudo aquilo, perto de todas as muito humanas contradições e fragilidades das personagens. O último plano de Charlie, que se afasta de costas como um vagabundo Chaplin, é o último plano de Abençoe seus pequeninos corações, e não podemos senão ficar com ele.
[1] Originalmente publicado em Encontros cinematográficos, ed. Jornal do Fundão, 2020