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Um faroeste iluminista

18 de fevereiro de 2021

Relatos do mundo, de Paul Greengrass, em cartaz na Netflix, é um desses faroestes reflexivos que aparecem de quando em quando para iluminar retrospectivamente o gênero, o mais tradicional do cinema norte-americano.

 

 

Reduzida a suas linhas gerais, é a história de um sexagenário que ganha a vida viajando pelo sul dos Estados Unidos e lendo publicamente de cidade em cidade as notícias publicadas na imprensa.

Esse homem é um veterano sulista da Guerra Civil, o Capitão Jefferson Kyle Kidd (Tom Hanks). Um dia ele topa com uma menina loura meio selvagem (a fabulosa Helena Zengel) que não fala nem entende inglês. Seu nome é Johanna e seis anos antes ela havia sido raptada pelos índios Kiowa, que mataram seus pais alemães e a criaram como um deles, até que a aldeia, por sua vez, foi dizimada pelos colonizadores brancos.

“Duas vezes órfã”, como diz uma personagem, Johanna é uma criaturinha anômala e intratável, e o atormentado Capitão Kidd assume como missão encontrar um lar que a acolha. A jornada dessa dupla improvável por vilarejos precários, trilhas incertas, desertos e montanhas acaba sendo um mergulho no coração da América dilacerada por violentas disputas sociais, políticas e étnicas. O território é o Texas, que Kidd e Johanna atravessam de norte a sul, e a data é 1870, cinco anos após o fim da Guerra Civil.

 

Cicatrizes vivas

Sem perder em nenhum momento o foco no vínculo afetivo que se estabelece entre os dois personagens, o filme consegue expor nesse deslocamento uma notável variedade de temas cruciais da história norte-americana: o extermínio dos índios, a disputa territorial com o México, a recusa do Sul em aceitar a derrota para o Norte e o fim da escravidão, a expansão para o oeste através das nascentes ferrovias, etc.

Um país que nascia na base do tiro e da porrada, deixando uma porção de traumas e cicatrizes – algumas das quais ainda muito vivas. “Texas first”, diz um bandoleiro a certa altura, prenunciando a divisa “America first” de Trump e seus seguidores xenófobos e supremacistas.

Assim como revisita temas candentes da história, Relatos do mundo dialoga também com o próprio gênero western. Existem faroestes solares, que expressam a potência de um país nascente e em expansão, como No tempo das diligências (John Ford, 1939) ou Rio vermelho (Howard Hawks, 1948), e existem faroestes crepusculares, que colocam a ênfase na derrota, na perda, no luto: Rastros de ódio (John Ford, 1956), Pistoleiros do entardecer (Sam Peckinpah, 1962), Os imperdoáveis (Clint Eastwood, 1992).

Relatos do mundo faz parte, evidentemente, da segunda linhagem. Mas com nuances. Embora comece praticamente às margens do Rio Vermelho celebrizado pelo filme de Hawks (e que marcava a fronteira com o México até a chamada Anexação do Texas, em 1845), a sua referência mais evidente é o clássico Rastros de ódio, em que outro ex-combatente sulista percorre meia América em busca da sobrinha raptada por comanches e criada como um deles. Mas, ao contrário do rancor revanchista do veterano vivido por John Wayne, para quem índio bom era índio morto, o Capitão Kidd tem uma postura tolerante e civilizada, tentando compreender o outro e suas razões.

 

A força da palavra

E é aí que reside o ponto de virada de Relatos do mundo em relação ao gênero. Ex-tipógrafo que teve seu ofício destruído pela guerra, Kidd é um apóstolo da palavra escrita. Ao ler para as populações rudes e incultas do interior profundo, ele alterna as funções de pregador, entertainer e agitador político. É um agente da informação, do conhecimento, das luzes. Uma figura que abala as ideias preconcebidas e desestabiliza as relações de poder.

Em contraste com a imagem de cinismo e oportunismo associada à imprensa em westerns como O homem que matou o facínora (1962), de John Ford, e Os imperdoáveis (1992), de Clint Eastwood, aqui a palavra impressa é vista como instrumento de esclarecimento e emancipação. “Compre livros para ela”, diz Kidd a um parente de Johanna. “Ela gosta de histórias”.

Relatos do mundo é um faroeste iluminista inclusive em sua construção visual. Apesar da exuberância das paisagens, o mundo social que ele mostra é um punhado de vilarejos sujos e escuros, envoltos em lama e poeira. A estupenda fotografia deixa sempre vastas zonas de escuridão nas cenas noturnas, talvez não só por uma tentativa de fidelidade à iluminação precária da época, mas também para enfatizar que estamos ali numa era de trevas.

Um mito americano profundo permanece: o do homem íntegro, disposto a fazer o que julga correto ainda que precise enfrentar os maiores perigos e adversidades. Esse personagem, que já teve o rosto de Henry Fonda, James Stewart, Gary Cooper e Gregory Peck, é encarnado aqui com dignidade e competência por Tom Hanks.

 

O espectro dos índios

Merece destaque o modo como são retratados os indígenas no filme. Eles surgem numa das cenas mais belas e surpreendentes – uma tempestade de areia colossal – e não são mais do que vultos silenciosos, como que fantasmas de um mundo ao qual nem Kidd nem nós, espectadores, temos acesso. O que resta dessa “outra humanidade” perdida é o idioma que Johanna preserva e tenta ensinar ao capitão.

Numa passagem igualmente inspirada, em que a menina procura mostrar com gestos circulares a ideia de “espírito”, unindo a terra e o céu, Kidd responde com a linha reta da concepção ocidental de progresso. O tempo cíclico dos indígenas em contraste com o tempo linear e progressivo dos supostamente civilizados.

O melhor de tudo é que essa densidade toda de significados e referências não prejudica em nada a eficácia do drama humano e da aventura, com direito a suspense, perseguições, tiros, surpresas e reviravoltas, a provar mais uma vez que entretenimento e reflexão não são necessariamente excludentes – como aliás o protagonista deixa claro em suas leituras públicas.

A última notícia lida por Kidd, para deleite da plateia, é a história de um homem que caiu em estupor e, tido por morto, foi sepultado vivo, mas ao acordar bateu com força no caixão e foi desenterrado. Talvez não tenha sido uma escolha casual. Assim como o samba (conforme os versos de Nelson Sargento), também o western agoniza mas não morre.