A boa notícia da semana: entra em cartaz na plataforma digital gratuita do Sesc uma preciosidade que estava há muito tempo fora de circulação, De crápula a herói (1959), de Roberto Rossellini.
A obra representa um momento crucial na carreira do diretor, um dos mais influentes do século 20. Depois de uma sequência de relativos insucessos, e do escândalo mundano em torno de seu romance com Ingrid Bergman, Rossellini voltava com esse filme ao tema que o consagrou: a Segunda Guerra Mundial, em particular a ocupação alemã e seus efeitos na vida cotidiana dos italianos.
O título brasileiro impõe uma interpretação moral. O original é simplesmente Il generale Della Rovere. A partir de um conto de Indro Montanelli, narra-se aqui a história de um vigarista de meia-idade, autointitulado Coronel Grimaldi (Vittorio De Sica), que vive de aplicar golpes contra familiares de italianos presos pelos ocupantes alemães, sob a acusação de serem judeus ou partigiani (membros de resistência antifascista).
Grimaldi, que é viciado em jogatina e eventualmente também explora prostitutas e coristas de teatro de revista, apresenta-se como pessoa influente junto às autoridades nazistas e, portanto, capaz de ajudar os parentes presos a escapar da deportação para a Alemanha, mediante quantias variáveis de acordo com as posses do freguês.
A certa altura, soldados alemães matam sem querer um líder da resistência (o tal general Della Rovere) que deveria ter sido preso vivo para identificar outros partigiani. Grimaldi é então detido e convencido pelo chefe da ocupação alemã em Genova, o coronel de verdade Mueller (Hannes Messemer), a passar-se pelo herói morto. Craque do falseamento e da tapeação, ele não teria, em tese, dificuldade para desempenhar o papel.
Ensaio sobre a mentira
Em torno desse enredo, Rossellini constrói um fascinante estudo sobre a mentira como meio de sobrevivência e de luta política, deixando as questões morais em suspenso até a última sequência. Misturando cenas ficcionais com registros documentais, o cineasta está em seu elemento, como nos essenciais Roma, cidade aberta (1945), Paisá (1946) e Alemanha, ano zero (1948).
É admirável a desenvoltura com que acompanha seu elusivo protagonista pelos escombros de uma Itália fustigada pelos bombardeios. E Vittorio De Sica, em geral tido como galã canastrão, compõe à perfeição o tipo requerido, combinando a argúcia do malandro com o porte altivo do cavalheiro.
Como todo grande filme, De crápula a herói nos faz pensar em outras obras que vieram antes ou depois. Seu argumento lembra indiretamente o “Tema do traidor e do herói”, conto de Jorge Luis Borges que Bernardo Bertolucci transformaria anos depois no filme A estratégia da aranha (1970) – traidor e herói sendo papéis quase intercambiáveis de acordo com as reviravoltas da história.
As reiteradas tentativas de Grimaldi de passar adiante uma safira falsa como se fosse verdadeira remetem, por sua vez, a O dinheiro (1983), o último filme de Robert Bresson, em que acompanhamos a circulação de uma nota de quinhentos francos de mão em mão. O percurso de Grimaldi e sua joia fajuta ilumina situações vividas por italianos das mais diversas classes sociais naquele momento de crise.
Crônica social, drama histórico, suspense político, alegoria moral: De crápula a herói é tudo isso ao mesmo tempo. Um de seus encantos, certamente não o menor, é haver juntado os dois grandes nomes do neorrealismo italiano, Rossellini e De Sica. O Leão de Ouro no festival de Veneza veio, de certo modo, premiar a ambos e ao movimento que deram ao mundo.
Ennio Morricone
Ennio Morricone, que morreu no último dia 6, aos 91 anos, tinha motivos para se aborrecer quando o definiam como “autor da música dos filmes de Sergio Leone”. Afinal, ele compôs mais de quinhentas trilhas para obras de diretores como Pasolini, Bertolucci, Polanski, Zurlini, Pontecorvo, De Palma, Malick e Tarantino, entre muitos outros, em todos os gêneros imagináveis.
Mas o fato é que o encontro de sua música exuberante, calorosa e inventiva com o cinema épico-operístico de Leone resultou num casamento tão perfeito quanto os das duplas Fellini-Nino Rota e Hitchcock-Bernard Herrmann.
Um dos pontos mais luminosos dessa interação é o magnífico duelo final de Era uma vez no oeste (1968), entre os personagens de Henry Fonda e Charles Bronson. Se o cinema, como dizia Abel Gance, é a música da luz, às vezes a música chega a ser a luz do cinema.
https://www.youtube.com/watch?v=MsMLaFZEIqE
Uma curiosidade: Ennio Morricone fez os arranjos para o disco italiano de Chico Buarque em 1970, quando o compositor estava exilado na Itália. O título do álbum, Per un pugno di samba, remete a uma obra-prima do faroeste italiano, Por um punhado de dólares, realizada em 1964 por Sergio Leone e musicada, claro, por Morricone.
Para quem quiser conferir, o disco está inteiro no Youtube: