Este post faz parte do filme Stop making sense, do diretor Jonathan Demme, em cartaz no IMS Paulista
O diretor estadunidense Jonathan Demme cravou "A luta continua", slogan do partido marxista de Moçambique, que em 1964 lutou em uma revolução contra os colonizadores portugueses, no final dos créditos da maioria de seus filmes.
O diretor estadunidense Spike Lee cravou no final dos créditos da maioria de seus filmes "Ya Digg? Sho Nuff. By any means necessary." (traduzido de gírias dos pretos do Brooklyn: "Entendeu? Te mostrei o bastante. Por todos os meios necessários.", esse último o célebre slogan do ativista negro Malcom X.)
O músico, escritor e performer estadunidense David Byrne formou, em 1975, uma banda de rock chamada Talking Heads. Cerebral, a banda, chegara um ano antes a chamar-se The Autists [Os Autistas]. O nome foi tirado de um guia de TV que chamava de "cabeças falantes" todos os programas intelectuais, sem ação.
Demme filmaria O silêncio dos inocentes, consagrado como o único filme da história a ganhar os cinco principais Oscars (Filme, Direção, Roteiro, Ator e Atriz), e faria o mundo passar a viver dentro dele, no universo dos true crimes espetacularizados, para sempre. Lee realizaria Faça a coisa certa e faria o mundo viver dentro do filme; passamos todos a morar no quarteirão onde se passa a história, para sempre. Byrne, com sua banda, sua carreira solo, seus livros sobre a importância de trocar o carro por bicicletas como meio de transporte, nos fez morarmos dentro de sua cabeça falante.
O primeiro encontro entre os três deu-se entre Demme e Byrne. Em 1984, os Talking Heads eram a mais bem-sucedida representação musical do movimento artístico mais interessante do país: a No Wave. Movimento multimídia que reunia, em uma Nova Iorque degradada por crime, drogas e ratos, o tipo de pessoas que vê em uma cidade degradada, logo com os aluguéis baratos, uma oportunidade para sobreviver: cafetões, prostitutas, ladrões, pintores, poetas, cineastas e músicos. De todas as cores e matizes, eles se misturavam e mineravam ouro dos escombros da cidade.
Byrne enxergava a beleza dessa Nova Iorque preta, judaica, latina, oriental, punk, hip hop, grafitti, com trânsito, propaganda em outdoors, consumismo, teatro kabuki, e resolveu roteirizar tudo isso em um musical. Dar um tempo na formação careta de banda de rock, e incluir músicos extras, das diversas etnias da cidade, para contar uma história que começasse no punk faça você mesmo e evoluísse para o funk que nascia na cidade e se preparava, mais uma vez, para mudar o mundo. Concebeu um concerto que começasse com o palco vazio, luzes brancas acesas, uma pessoa no palco carregando um sistema de som portátil de mão, desses que sacodem o quarteirão, e terminasse com um palco lotado, multicolorido, multifunkeado e tão multissentido que o único nome possível para o show era "Parando de fazer sentido". Nasceu Stop Making Sense.
Com sete câmeras coordenadas por Jordan Cronenweth, fotógrafo de Blade Runner (outdoors, publicidade pós-punk, o terno gigante de Byrne inspirado no teatro japonês, a dança solitária com o abajur replicante, o jeito replicante de dançar), Stop Making Sense foi filmado em quatro noites com equipamento analógico, e quando chegou aos cinemas mudou o jogo da história dos filmes de shows, porque fez o que ninguém havia feito antes: tentar, e conseguir, fazer do espectador do filme o espectador do show, combinando, pela primeira vez, dois estilos de filmar música ao vivo. Essa ideia, de Demme, artista sem par em equilibrar estilos distintos (ver outra obra-prima dele, Totalmente selvagem, de 1986) é a que fez de Stop Making Sense um show portátil que te oferece uma cadeira nos melhores assentos, um show que cabe em uma fita de VHS, ou em um DVD, ou em um Blu-Ray e, agora, restaurado e remasterizado em toda sua glória e sentido, no cinema, hoje, em 2024. Quem iria prever um fim tão utópico para o filme de Demme?
Stop Making Sense foi automaticamente eleito o melhor show da história, tanto para os poucos que puderam assistir ao vivo quanto para os milhões que assistiram ao trabalho de Demme. O reinado absoluto do show de 1984 terminou quando David Byrne, em carreira solo, concebeu, em 2018, o projeto American Utopia, como um álbum, um show e um filme. Uma resposta à sombra de Donald Trump, a revolução que Byrne pensou para o conceito do show foi, como tudo o que é revolucionário, uma ideia simples que ninguém havia tido antes. Retirar do palco todos os amplificadores, caixas de som, cenário e cabos. Deixando cada músico para, descalços, performarem livremente, fazendo que, dessa forma, movimento fosse música. Como se, em uma apresentação do Lago dos cisnes, todos os bailarinos, além de dançar, tocassem o instrumento, ou seja, fossem também a orquestra. Ou o contrário, se a orquestra inteira se levantasse e, com o palco vazio, dançasse. Qual é a diferença entre música e movimento? Nenhuma, demonstra o show. Por isso, foi imediatamente eleito pelo site Pitchfork o novo melhor show de todos os tempos.
Foi quando o segundo encontro aconteceu. Byrne chamou Spike Lee para dirigir um filme do show. Em Faça a coisa certa, o objeto central é exatamente o sistema de som portátil arrasa-quarteirão que Byrne usou na abertura de Stop Making Sense. Em conversa recente, pessoal e informal com Spike, a caminho de uma palestra que demos juntos em 2022 no Rio de Janeiro, o cineasta me confidenciou que foi chamado porque Byrne viu o proibido documentário Brazil, que Lee filmou aqui, em segredo, durante o impeachment de Dilma Rousseff, uma obra tão genial quanto necessária, que pude também assistir e só lamentar o imbróglio que impede o filme de um dia ser lançado. Para além do lamento, Lee disse que, a princípio, desconfiou do convite de Byrne, mas quando viu, na primeira música do show, Byrne sozinho em um palco nu com um cérebro na mão, soube que ele aceitaria o pedido.
Com quase 20 câmeras coordenadas por uma das crias da No Wave, a fotógrafa Ellen Kuras, de Sobre café e cigarros”, de Jim Jarmusch, Lee, ao contrário de Demme, que fez nos sentirmos espectadores de Stop Making Sense, inverteu: o filme American Utopia é o espectador. E nós, nossas crenças, nossa sensibilidade, o show. American Utopia nos espia, nos convidando o tempo inteiro a entrar naquele mundo estonteantemente novo de um palco sem fios, um mundo sem amarras, em performances audiovisuais no filme que nos lembram dos heróis mortos na luta que não para de continuar. Marielle Franco surge, presente. E nós, ali, livres para sermos assistidos, escaneados, revigorados, refeitos. Não estamos acostumados a isso. Uma das mercês do cinema, inclusive, é, com frequência, nos amarrar na cadeira e fazer um tour guiado por uma narrativa. Isso posto, o filme American Utopia, de Spike Lee, é um passo à frente na história do cinema. Essa utopia realizada que é lutar para que o cinema avance enquanto dispositivo e linguagem, ampliando seu propósito e sentido. Se todo show deveria, a partir de agora, abolir cabos elétricos, todo filme deveria ser, a partir de agora, como Spike o concebeu, repetindo, colocando não o espectador dentro do filme, mas o filme dentro do espectador. Ya Digg? Sho nuff. By any means necessary. A luta continua.