A Sessão INDETERMINAÇÕES: IMPROVISAÇÕES SÔNICAS, IMAGINAÇÃO FUGAZ está em cartaz no cinema do IMS Paulista em maio.
Nos últimos anos, a provocação do cineasta e videoartista norte-americano Arthur Jafa – “Como fazer com que as imagens pretas vibrem de acordo com certos valores frequenciais que existem na música preta?”[1] – tem ressoado no Brasil, direto dos arquivos dos anos 1990, como um chamado para repensar a relação entre som e imagem no cinema negro brasileiro. Contudo, essa questão parte de uma suposição que talvez precise ser desestabilizada: e se o som não puder ser traduzido em imagem?
Se a música preta opera em intensidades que não se deixam capturar inteiramente pelo olhar, a questão não está apenas em transpor suas frequências para o campo visual, mas em reconhecer que a vibração não se traduz, e sim se propaga. Os ritmos do hip hop, do samba e do funk não são códigos a serem lidos como uma imagem, mas forças que movimentam, que desestabilizam, que se fazem sentir antes mesmo de se tornarem representação.
A falha não está apenas na tentativa de categorizar essas pulsações dentro de uma gramática visual, mas na própria expectativa de que som e imagem possam ser apreendidos da mesma forma. Há algo que sempre escapa aos limites do dicionário das imagens, que reverbera fora do visível, que insiste naquilo que não pode ser enquadrado. E talvez seja exatamente essa impossibilidade de fixação que torna a seguinte pergunta tão vibrante: ao invés de tentar enquadrar essas frequências dentro das imagens, como permitir que o cinema se torne permeável a elas? Como filmar não para capturar, mas para escutar? Como afinar o olhar para que ele não só veja, mas ouça? Como nos tornamos dignos dessa escuta?
Em IMPROVISAÇÕES SÔNICAS, IMAGINAÇÃO FUGAZ, os visuais vibram em sintonia com os ouvidos, e os sons estremecem em imagens. Antes de pensar em como fazer com que as imagens pretas vibrem nas mesmas frequências da música preta, como se as coisas realmente pudessem ser transpostas de uma linguagem a outra, nos cabe pensar sobre o som como forma, método e expansão. As associações livres funcionam muito bem como meio, mas são inadequadas com o devir das coisas quando abordadas como fim.
É possível, sim, a partir dessa seleção de obras, pensar os frames, por exemplo, como atabaques. Superfícies – percussivas – que desafiam as ordens do tempo, cadências rítmicas que inserem momentos dentro da lógica inconstante e imprevisível do som; discursos inacabados, cantos coletivos, construções vazias, bailes e multidões. Mas o efeito de comparação é, em parte, escasso.

É possível, sim, a partir dessa seleção de obras, pensar os frames, por exemplo, como atabaques. Superfícies – percussivas – que desafiam as ordens do tempo, cadências rítmicas que inserem momentos dentro da lógica inconstante e imprevisível do som; discursos inacabados, cantos coletivos, construções vazias, bailes e multidões. Mas o efeito de comparação é, em parte, escasso.
Como podemos falar das imagens como atabaques se ainda somos incapazes de compreender o que se produz com esse instrumento? Como abordar as festas das almas invocadas pelos pontos tocados pelos Ogãs? O ouvido nunca foi conivente com o medo que os olhos têm do mistério, com o desejo do conhecimento pleno e indiscutível através da visão. A escuta é a única tecnologia capaz de desvendar esses enigmas, pois, em sua atividade, nunca cessa de produzir outros.
Assim, o canto de Juçara Marçal vibra na escuridão da sala, entrelaçando-se aos ruídos de Cadu Tenório em “Canto II”, eco do LP O canto dos escravos. Na música, a cultura negra responde à sua vocação ancestral e se torna espaço de ressonância. A textura sonora – do ruído eletrônico e do compasso da voz melódica, que ecoa em sua própria materialidade, difusa em relação aos outros sons que compõem a faixa – não apenas desloca o canto da rigidez dos arquivos históricos, mas o converte em pulsos elétricos, códigos de informação que trafegam pelo circuito sonoro para chocar contra a tela negra do cinema. As imagens que brotam da nossa imaginação e do olhar, guiadas pelo som, parecem vibrar na mesma frequência da sequência inicial do curta Copacabana (Flávio Federico, 1999). Nela, a câmera errante rasteja pela areia e entre os corpos, como se fosse convocada e sacudida pelo Ponto. A tecnologia da imagem se transforma em encantamento.
O caráter espiritual do ritmo também atravessa todos os outros filmes desta sessão. Em Alafin Oyó (TV Viva, 1989), essa dimensão se revela na fusão entre o afoxé e as vozes que ressoam as memórias de tradição e resistência afro-brasileira. O cortejo nas ruas do Recife transforma o espaço urbano em território ritual, onde música, dança e oralidade se entrelaçam numa catarse coletiva. O ritmo não apenas embala, mas convoca: é a força espiritual que ativa ancestralidades e redesenha o presente com passos e tambores. Em Memória Goitacá (Heloísa Mattos e Paulo Sérgio Pestana, 1976), o ritmo vibra no contraste entre o trabalho e a celebração. O filme atravessa as paisagens do Norte Fluminense não apenas para documentá-las, mas para escutá-las: é nos cantos, nos batuques e nas danças que o passado se inscreve e a coletividade se refaz.
Em Mandacura (biarritz, 2016), a combinação de diferentes formatos digitais – como animações, colagens e registros de tela – cria uma fusão entre o real e o abstrato. O som de tambores e cânticos adiciona profundidade à paisagem visual, gerando um diálogo entre tecnologia e memória. Já em Nada haver (Juliano Gomes, 2022), a narrativa não segue um percurso convencional, mas transmite a sensação de que algo está sempre prestes a acontecer. Uma provocação aos ouvidos, que esperam a virada do beat que não chega, e, ao mesmo tempo, aos olhos, que anseiam por uma interpretação daquelas imagens estáticas dos rolezinhos.
Diante disso, é necessário pensar a escuta não como uma operação passiva de recepção, mas como um modo de envolvimento profundo com o mundo. Diferente do olhar – que frequentemente classifica, distingue e separa –, o ouvir compromete o corpo inteiro numa experiência de porosidade. Escutar é ser afetado por aquilo que não se vê, é deixar-se atravessar por presenças que não se impõem como imagem. No cinema, essa escuta radical propõe outra relação com o tempo e com a narrativa: uma forma de atenção que não busca entender, mas sustentar a presença do som como potência de mundo. Essa escuta pode proporcionar ao cinema negro brasileiro um espaço livre das categorias preestabelecidas, onde os paradoxos e as incongruências se tornam forças propulsoras de um processo criativo radical, no qual a memória passa a ser ruído, e o afeto, pulsação.
Se há uma ética que emana dessa escuta, ela se funda na disposição de ser transformada pelo som. Escutar é também consentir em não saber tudo, é aceitar ser conduzido por outra lógica – mais circular, mais relacional, mais afetiva. Nessa condição, o cinema deixa de ser um espelho e se torna tambor: não reflete, reverbera. E, ao reverberar, convoca outras formas de presença e outros tempos. Que o som continue ecoando no escuro.
[1] JAFA, Arthur. “69”. In: WALLACE, Michele (org.). Black Popular Culture. Seattle: Bay Press, 1992