A bomba da semana, em mais de um sentido, é o lançamento do blockbuster norte-americano Vingadores: ultimato, que entra em 2.700 das 3.300 salas de cinema do país. Isso significa que um único filme (ou “produto”) ocupa mais de 80% do circuito exibidor.
Essa situação anômala foi propiciada pela Justiça Federal, que em novembro do ano passado derrubou uma norma da Agência Nacional de Cinema (Ancine) pela qual um complexo de salas não podia ocupar mais de 30% delas com um único título. Agora liberou geral. Para se ter uma ideia comparativa, em Portugal, o mesmo blockbuster estreou ocupando 20% dos cinemas; na Alemanha, 27%.
Filmes desalojados
Por causa da avalanche vingadora, diversas estreias nacionais e estrangeiras foram adiadas, segundo o boletim Filme B, o principal veículo sobre informações do mercado. O diretor Halder Gomes escreveu no Facebook que seu filme Cine Holliúdy 2: a chibata sideral, que vinha fazendo grande sucesso no Nordeste, aproximando-se dos 200 mil ingressos vendidos, foi retirado de várias salas cearenses, trocado pelos Vingadores.
Uma tamanha concentração do mercado afeta não apenas os filmes brasileiros, mas toda a produção cinematográfica não-hegemônica, venha ela do México ou da Coreia, da Noruega ou do Capão Redondo. O público perde em diversidade, a cultura fica mais pobre.
Haverá quem diga que os filmes brasileiros, com exceção das comédias globais e de alguns dramas religiosos, já vinham sendo vistos por pouca gente. É verdade. Nos últimos anos assistimos a um fenômeno curioso: certos filmes brasileiros, como Gabriel e a montanha, As boas maneiras e, agora, Los silencios parecem encontrar maior receptividade na Europa do que nos nossos cinemas.
Seria exaustivo tentar explicar as razões disso, que vão desde a concentração das salas exibidoras em shopping centers e multiplexes distantes dos bairros mais populares até o preço dos ingressos, passando por uma certa uniformização do gosto de uma classe média tradicionalmente refratária ao cinema nacional. Com tanta oferta de filmes e séries pelos serviços de streaming e video on demand, é compreensível que muitos espectadores só queiram sair de casa para experimentar no cinema o prazer imediato e sensorial dos efeitos especiais, do 3D, do som Dolby não sei das quantas.
Pluralidade ameaçada
Para o espectador que valoriza e busca a pluralidade de olhares, de temas e estéticas, restam o diminuto circuito alternativo (as salas do IMS, o Cinesesc, os CCBBs, alguns centros culturais de prefeituras ou de universidades) e eventos como mostras e festivais. Estes últimos receberam recentemente um golpe fatal com a decisão da Petrobras de cortar todos os seus patrocínios culturais, o que ameaça a qualidade e a extensão (se não a realização) até mesmo de eventos de longa tradição, como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Festival do Rio e o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Para a produção cinematográfica brasileira a situação se agrava com a suspensão dos contratos de fomento da Ancine, noticiada ironicamente na mesma semana em que o festival de Cannes, o mais importante do mundo, anunciou a participação de quatro filmes brasileiros, entre eles Bacurau, de Kleber Mendonça Filho (na competição principal), e A vida invisível, de Karim Ainouz (na mostra Um Certo Olhar). Os outros dois são a coprodução ítalo-brasileira O traidor, de Marco Bellocchio (competição oficial), e Sem seu sangue, longa de estreia de Alice Furtado, na Quinzena dos Realizadores.
O setor se mobiliza para reagir. A SPCine, empresa de cinema da prefeitura de São Paulo, e entidades da categoria, como a Associação Brasileira de Documentaristas, divulgaram notas manifestando preocupação com a virtual paralisação da atividade cinematográfica no país, que afetaria centenas de milhares de empregos diretos e indiretos, sem falar no empobrecimento cultural implicado.
Num contexto em que toda a produção artística e cultural (incluindo a pesquisa científica e a atividade acadêmica) é colocada sob suspeição pelos donos do poder, e até mesmo vista como franca inimiga por suas facções mais raivosas, a estreia avassaladora de Vingadores: ultimato assume ares de funesto sinal dos tempos. O próprio título se tinge de uma ácida ironia. Nós, que amamos tanto o cinema, começamos a nos sentir estrangeiros em nossa própria terra.
José Geraldo Couto é crítico de cinema, jornalista e tradutor. Publicou, entre outros, André Breton, Brasil: Anos 60 e Futebol brasileiro hoje, e participou com artigos e ensaios dos livros O cinema dos anos 80, Folha conta 100 anos de cinema e Os filmes que sonhamos. Veja textos da coluna semanal sobre cinema que assinou no Blog do IMS entre setembro de 2011 e dezembro de 2018.