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Uma questão de aparência

06 de novembro de 2018

A terceira edição do evento bimestral Sessão Mutual Films, com os filmes Vinte dias sem guerra e País bárbaro, acontece nos dias 15 e 25/11 no IMS Rio e vai para o IMS Paulista em 29/11 e 2/12.

Uma lembrança: soldados e civis soviéticos misturados, que descansam entre as ruínas de um edifício. Ouve-se apenas uma melodia, que remete a um parque de diversões. Um grupo se organiza para ser fotografado. O som de mísseis interrompe a música e, repentinamente, tudo voa pelos ares. Voltando ao presente, em um set de filmagem, atores interpretam a história que originou a lembrança, uma história cujo real protagonista – um escritor e soldado de meia-idade – diverge enfaticamente do falso heroísmo presente na dramatização.

Em outro lugar, soldados e civis italianos desfilam uniformizados. Inúmeras paradas reforçam a pompa do regime fascista. As mentiras do progresso e da civilização são encobertas pelo ritmo monótono dos passos de colaboradores, cientes e não cientes da política expansionista genocida do regime. Acompanhando as imagens, um narrador comenta: “Eles precisam de uniformes, fantasias, em resumo, é tudo uma questão de aparência”.

Esses dois retratos provêm respectivamente dos filmes Vinte dias sem guerra (1976), de Aleksey German, e País bárbaro (2013), de Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, que compõem a edição de novembro do evento bimestral Sessão Mutual Films. A obra de German é uma ficção com narrativa clássica que relata a história de um soldado em licença durante a Segunda Guerra Mundial. A de Gianikian e Ricci Lucchi é um documentário formado a partir de fontes primárias (filmes, fotografias e documentos escritos) da época do fascismo italiano e suas campanhas de destruição em colônias africanas. Os três artistas compartilham uma luta contínua contra a falsa imagem de pudor e heroísmo de regimes autoritários.

German passou sua carreira cinematográfica buscando precisão histórica. O diretor russo (nascido em 1938 e morto em 2013, tendo concluído um total de seis filmes) se dedicou a representar a história recente da Rússia e da União Soviética, do final da Primeira Guerra Mundial à morte de Stalin. Suas obras são recriações meticulosas, filmadas em preto e branco, de momentos de desilusão ideológica do regime soviético. Seus protagonistas são soldados e oficiais corruptos, desgastados ou coagidos, que, ao longo de seus percursos, expõem a violência física e intelectual do período estalinista. Consequentemente, seus filmes pré-Glasnost foram censurados, inclusive Vinte dias sem guerra, sua obra crítica mais comedida.

Cena de Vinte dias sem guerra

Diferentemente dos filmes vertiginosos, desorientadores e com múltiplos protagonistas, como Meu amigo Ivan Lapshin (1984), sobre a Grande Purga promovida por Stalin antes de assumir o poder, e Khrustalyov, meu carro! (1998), que retrata a decadência social no período da morte de Stalin, Vinte dias sem guerra – inspirado em escritos do poeta e correspondente de guerra Konstantin Simonov – possui um ritmo mais melancólico e centrado em um único personagem. Durante uma licença de 20 dias da Batalha de Stalingrado, o soldado e escritor major Lopatin (Yuriy Nikulin, conhecido na época como um ator cômico) retorna à sua cidade natal com os pertences de um soldado morto, que devem ser entregues à sua família. Nesse período, ele discursa fervorosamente para trabalhadores infantis em uma fábrica de materiais bélicos (“Dia e noite, a produção de vocês aniquila os alemães em Stalingrado”), mas também critica o retrato demasiadamente heroico da guerra, ao assessorar uma produção cinematográfica baseada em seus escritos, afirmando ser “uma mentira”.

Lopatin ao mesmo tempo sustenta a visão ideológica da guerra para aqueles que a amparam à distância e se vê isolado com suas árduas memórias, contraditórias à visão fantasiosa daqueles que o rodeiam. Suas palavras se tornam uma ponte que conecta duas realidades. Ainda que todos estejam sendo afetados pela guerra, ele é o único na cidade que esteve no campo de batalha e que pode descrever a degradação humana no front.

A obra do casal Gianikian e Ricci Lucchi (ambos nascidos na Itália em 1942) tem como lema “jamais esquecer”. Durante seus mais de 40 anos de colaboração – uma parceria que começou em 1974 e se encerrou com a morte de Ricci Lucchi em fevereiro deste ano –, a dupla produziu inúmeras obras, filmes, instalações audiovisuais e desenhos, com a intenção de preservar a memória e refletir sobre a condição presente. Seu principal método de trabalho se baseia na ressignificação de registros visuais de arquivos públicos e particulares, que, muitas vezes, chegam em suas mãos profundamente deteriorados. Eles refotografam as imagens, quadro a quadro, com um dispositivo que denominaram “câmera analítica”, e manipulam o material fotografado – que retrata predominantemente as consequências devastadoras do militarismo colonialista europeu dos séculos XIX e XX – com tinturas e alterações de velocidade, para criar uma sensação de suspensão do tempo.

Cena de País bárbaro

País bárbaro, último longa-metragem do casal, considera o fascismo um fenômeno histórico contínuo. E o faz ao traçar uma linha que começa com as campanhas de conquista e extermínio nas colônias africanas da Líbia e Etiópia, durante as décadas de 1920 e 1930, e culmina na Europa contemporânea e sua rejeição aos refugiados de guerra. O filme justapõe imagens coloridas e deterioradas à música contemporânea minimalista e à narração em off que comenta e relata, a partir de documentos primários, os métodos de destruição em massa de Benito Mussolini, que incluíam o uso de armas químicas.

Essas armas de extermínio ainda são usadas hoje, diz um narrador, enquanto observamos fotografias antigas de mísseis, aviões e soldados italianos. Ao estudar uma série de emblemas e imagens que expressam o poder das forças armadas, País bárbaro reflete sobre as qualidades que tornaram Mussolini e outros líderes atraentes. Em determinado momento, o narrador declara: “Cada período tem seu fascismo”.