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Vendo o que não se viu

14 de março de 2018

 

Imagens do Estado Novo 1937-45, de Eduardo Escorel, entra em cartaz no IMS Paulista em 15 de março e no IMS Rio no dia 22. O documentário examina a herança do período a partir de vasto material de arquivo, como cinejornais, fotografias, cartas, filmes, trechos de diário e canções populares. Este depoimento do diretor foi extraído de uma entrevista a Eduardo Morettin e Mônica Almeida Kornis publicada na revista ArtCultura.

 

Eu queria, na verdade, fazer o documentário sobre o Estado Novo usando apenas imagens de família e cartas. Esse era o meu projeto. Comecei a trabalhar nessa direção, mas rapidamente constatei que seria muito difícil, em parte porque o acervo de imagens de família no Brasil é pequeno, restrito, e em parte porque o conjunto de cartas que conseguimos ler e selecionar não dava conta do assunto. Quando vi e li o material, achei que não daria, tanto que nas primeiras versões ele não foi incorporado, até porque a datação desse material é muito difícil. Já no material de arquivo, tivemos uma preocupação bastante rigorosa de que as imagens se referissem exatamente àquele evento do qual se estava falando. Cruzando as informações com o diário de Getúlio, conseguimos datar com bastante precisão quase tudo que havia. Temos uma estrutura, uma organização das imagens de arquivo, deixando as de família de lado, que é bastante rigorosa e precisa nesse sentido. As imagens de família acabaram sendo usadas, claro, mas com total liberdade, já que não podemos datá-las com muita precisão a partir das informações que temos. Às vezes, essas informações são até erradas — trocam década de 1930 por década de 1940 etc. Às vezes conseguimos datar por elementos que estão na própria imagem: um filme mostra uma partida de tênis na Suíça, você consegue ver o nome dos jogadores, vai lá, pesquisa e consegue saber em que mês e ano aconteceu aquela partida. Mas há liberdade no uso. Com certeza as imagens que usamos são anteriores aos eventos de 1937, mas não há o compromisso de datá-las. Há outro perigo no uso das imagens de família, que é a tendência instintiva e inata que temos de interpretá-las. Quer dizer, se você vê um patrão e um empregado lutando boxe, você toma aquilo como metáfora de alguma coisa. Nós tentamos usar as imagens de família sem essa intenção, e também sem que, quando se fala de alguma coisa, apareça uma imagem que tenha uma relação direta com aquilo. É como se houvesse uma linha em que, com as imagens de cinejornais e similares, se contasse uma história, e outra linha em que, com as imagens de família e os escritos, se contasse outra. A primeira coisa que aparece no filme, mesmo antes da cena da ressaca, é um trechinho de três palavras de um manuscrito datilografado das memórias da Alzira Vargas, em que ela diz “Eu não vi” — depois descobriu, depois soube. É uma frase muito curiosa, em que ela coloca todas essas questões. E é um documentário sobre o Estado Novo que começa dizendo que você não viu — e realmente nós não vimos nada daquilo.

 

Cena de Imagens do Estado Novo 1937-45

 

Acho que na montagem existem inúmeras tentativas de solução ou recursos que são derivados diretamente da experiência de montar o Santiago (João Moreira Salles, 2007), por mais diferentes que os dois filmes sejam em temática e assunto. A crítica ao uso da imagem como ilustração foi uma questão permanente durante a montagem de Santiago, uma espécie de autopoliciamento para não nos deixarmos levar pela tendência quase instintiva, pelos hábitos que temos, de usar a imagem de maneira ilustrativa. Várias questões do Santiago reaparecem no documentário, como a utilização de cartas, a aproximação de certas palavras, o uso mais sistemático da tela preta. Tudo isso são questões que com certeza têm a ver com essas experiências anteriores.

Eu me coloquei o seguinte objetivo: vamos fazer um documentário sem nenhum tipo de depoimento e de entrevista, baseado num recurso que hoje em dia está um pouquinho recuperado, mas que durante uns 10 ou 15 anos foi considerado uma blasfêmia máxima, que é a narração em off. Algum tempo atrás, quem fizesse isso era considerado um ser abjeto. Isso veio também um pouco do Santiago. Curiosamente, o João [Moreira Salles], que era adepto do cinema direto, que fazia filmes sem narração, de repente se propôs a fazer um documentário em que a narração é parte intrínseca e essencial do processo. No caso de Santiago, o texto não foi escrito nem antes nem depois, foi escrito durante a edição; ele tinha um computador na ilha de edição, e nós editávamos e escrevíamos o texto e gravávamos ao mesmo tempo; editávamos em função da imagem, reescrevia-se o texto e, em função do texto, se reeditava a imagem. Foi um processo muito integrado, que de certa forma foi reproduzido agora no Estado Novo. Embora não seja o mesmo tipo de texto, foi feito assim também, escrito em grande parte na ilha de edição. Tentamos sempre fazer com que o texto viesse das imagens, e não que as imagens resultassem do texto. É um pouco por isso, apesar de ter feito recentemente um documentário que tem um longo trecho de depoimento, que tenho, no momento, certa impaciência e má vontade com todo cinema documental que se baseia em depoimentos e entrevistas.

Gostaria que o filme fosse sempre a partir das imagens, mas acho que, na verdade, não conseguimos isso, há segmentos importantes de texto em que certas informações são dadas, muita coisa que vem da historiografia sobre o período está ali. Até gostaria que fosse mais radicalmente só a partir das imagens, mas aí existem outras implicações, porque o acervo que conseguimos reunir, embora seja extenso, é também lacunar. Há coisas sobre as quais você não tem uma compreensão, e há uma preocupação com certo nível de didatismo, a fim de tornar aqueles episódios e aquelas pessoas minimamente compreensíveis para quem tenha a disposição e a paciência de assistir. Há coisas que não vêm da imagem, mas nós fizemos o tempo todo um grande esforço para trabalhar a partir delas.