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Martel, formas e discursos

22 de março de 2018

 

Por ocasião da estreia de Zama, de Lucrecia Martel, entre os dias 24 e 28 de março no IMS Paulista e 30 de março a 4 de abril no IMS Rio, serão exibidos os três longas-metragens anteriores da realizadora – O pântano e A menina santa, em cópias 35 mm, e A mulher sem cabeça, em cópia digital. No dia 25 de março a sessão de O pântano no IMS Paulista será comentada ao vivo pela diretora.

 

Cena de A menina santa, um dos filmes em cartaz

 

Um ponto central para se aproximar do cinema de Lucrecia Martel é o estilo, e o que ele pode significar em termos de autoralidade de um artista em relação a uma obra ou ao conjunto de seus trabalhos. A cineasta impregna seus filmes com uma estética (no sentido mais amplo do termo), uma forma e uma linguagem visual e sonora que saltam aos olhos. Martel é uma realizadora que consegue aliar as estruturas formais de suas composições ao discurso cheio de texturas que confere aos seus trabalhos. Usa complexas estruturas formais que contém, sinalizam e apontam aquilo que costumamos chamar de conteúdo (dramático e narrativo). É a partir desse processo que a diretora argentina é capaz de realizar filmes que estão entre o que de mais relevante o cinema mundial produziu nessas duas últimas décadas.

Após nove anos sem um longa-metragem, Lucrecia Martel chega com seu Zama. Um filme que aparentemente se desloca em relação aos seus três primeiros, mas que, se olharmos atentamente, guarda muitas semelhanças em relação a eles, tanto na forma quanto no conteúdo discursivo. Ao mudar seu tempo de ação para o século xviii na Argentina, ainda colônia espanhola, Martel compõe Zama com planos mais longos, enquadramentos mais abertos e um andamento narrativo mais lento, em que as tensões presentes na dramaturgia se tornam mais depuradas e, mesmo sem perder nada em intensidade, se oferecem de maneira mais contemplativa e menos fragmentária do que nos trabalhos anteriores da diretora. Mas, para se aproximar e analisar melhor o novo filme, é necessário jogar uma luz sobre o que Lucrecia realizou antes.

Em seus três primeiros longas, O pântano (2001), A menina santa (2004) e A mulher sem cabeça (2008), encontram-se características comuns que são trabalhadas e depuradas de diferentes maneiras, ao mesmo tempo que se replicam e dialogam entre si de um filme ao outro. Temos o universo de uma classe média argentina que vive em cidades pequenas. Uma classe em decadência, que perde poder e contém, de um lado, adultos angustiados, incapazes de se comunicar, frustrados, e que veem seus anseios serem invariavelmente abafados e realojados por uma sensação de incapacidade, paralisia, suspensão emocional e física. De outro lado, existem adolescentes que transbordam desejos, erotismo e pulsões em estado bruto, constantemente reprimidos, e cujo futuro é a condenação de serem iguais aos adultos que os cercam. Entre a prostração e esse desejo constante, mas que jamais consegue satisfação, as personagens se inserem em situações paradoxais em que o erotismo e a apatia convivem em um permanente processo de deslocamento pulsional. Desses conflitos dramáticos, surgem relações incestuosas, jogos eróticos entre adolescentes e adultos, aversão, frieza nas relações conjugais, incapacidade de perceber a presença do outro e um alienamento da própria forma com que essas personagens se autodeterminam. Como parte estruturante desse universo social, cada um dos filmes de Martel coloca em destaque o conflito de classes. Essa classe média moribunda e cheia de frustrações se choca com qualquer representante das camadas mais pobres (bem como de todo aquele que aparente ser diferente), por meio de humilhações, violência, medo ou desprezo.

Todo esse contexto discursivo se potencializa e ganha dimensões pelas estruturas formais presentes no estilo da diretora. A partir de um domínio rigoroso da composição de quadro, a mise-en-scéne trabalha sempre para provocar perturbações e tensão no interior dos planos. Os enquadramentos são quase sempre fechados, o que promove, aliado ao posicionamento da câmera, o recorte e a fragmentação dos espaços, fragmentando assim as percepções do espectador e conferindo à dramaturgia uma crescente sensação de desconforto e deslocamento. A construção meticulosa e significante da banda sonora, a organização do que está dentro de campo − com personagens nas bordas do quadro, desfocadas em plano de fundo ou em primeiro plano e o achatamento da profundidade de campo −, a força dramática do extracampo e os planos sempre curtos, ligados por cortes secos, elevam ainda mais o desconforto e o mal-estar que são onipresentes no discurso dramático-narrativo de Martel. A materialidade dos espaços onde ocorrem as ações, bem como os corpos das personagens e a presença física de objetos de cena e figurinos, são elementos cruciais para que a diretora proporcione ao espectador uma imersão sensorial nos ambientes da diegese.

Zama, em suas mudanças na construção formal e evolução narrativa, retoma e atualiza os mecanismos estético-discursivos presentes nos longas anteriores da diretora. O filme acompanha a trajetória do agente da coroa espanhola Diego de Zama em um processo de desmoronamento emocional e corporal. Como as personagens da classe média argentina nos dias de hoje, Zama é representante de um estrato social desimportante que se vê tolhido de poder, incapaz de se relacionar com o outro, deslocado entre seus desejos e atirado a uma existência cada vez mais frágil. Sua ambição de ser transferido para outra localidade – última chance de tentar se autodeterminar em sua subjetividade - vai desmoronando em meio à rotina anódina, em que é apenas um medíocre servidor burocrático, e às ações e responsabilidades irrelevantes que executa. Fragmentado em suas potências, isolado daquilo que almeja, Diego de Zama segue sua jornada em direção à radical aniquilação física e existencial. Típico personagem de Lucrecia Martel, ele é um ser desprovido de domínio sobre tudo a sua volta, condenado a vagar destroçado por um espaço que não é capaz de lhe satisfazer as pulsões já difusas, e no qual ele sobra apenas como um representante fantasmático do mal-estar que assola toda uma ideia de civilização de origem europeia que se desintegra em solo latino-americano.

 

  • Fernando Oriente é crítico, professor e pesquisador de cinema, editor do site Tudo vai bem.