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Cadernos de

Marc Ferrez

[Contabilidade, vistas e coleções]

Fundo Família Ferrez
Acervo do Arquivo Nacional

 

Utilizado sobretudo nos últimos anos de vida de Marc Ferrez, parte deles passados na França, o caderno contém impressos, folhetos de equipamentos e produtos, além de outras anotações como encomendas de amigos e familiares. Evidencia-se o interesse de Marc Ferrez pela fotografia colorida, que alcançava um público crescente, ávido das novas técnicas e da produção de imagens. Finalmente, esse conjunto é sugestivo da atmosfera e da visualidade constitutivos dos hábitos de consumo e da sociabilidade burguesa europeia, essencialmente francesa, no período do entreguerras.

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Marc Ferrez. [Contabilidade, vistas e coleções]

Código de Referência do Arquivo Nacional: BR_RJANRIO_FF_MF_1_0_02_5

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A França dos Ferrez

Marc Ferrez nasce no Rio de Janeiro, em uma família de franceses, e ao longo de sua vida morou na França em diferentes períodos – na extrema juventude e na velhice. A cultura francesa atravessa a sua trajetória incluindo as técnicas fotográficas, a associação à empresa de cinema Pathé, o estilo de vida, o uso cotidiano do idioma, como se vê nos cadernos. No período abrangido, a França emergia da belle époque com a idealização que se fez do que seria a grande passagem, “espécie de antessala do mundo contemporâneo”, que tende a diluir a “face sombria e trágica” da época e tudo que se anuncia com a guerra de 1914-18, como define Francisco Falcon. Nas imagens apresentadas e nas anotações do fotógrafo, a França, e principalmente Paris, ainda é a das grandes reformas urbanas, dos parques, monumentos, de uma natureza domesticada, destituída de conflitos e multidões. Da janela do hotel, pelas lentes de Luciano Ferrez, assiste-se à parada do 14 de julho, data nacional, mas de caráter universal na perspectiva ocidental. Também Luciano é autor da fotografia de Malia Frucht, uma composição campestre, a França do interior no imediato pós-guerra, distante das trincheiras e do ritmo acelerado das cidades.

Parada do 14 de julho tomada do Hotel Brebant. Paris, França, 1919. Foto de Luciano Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.
Malia Frucht. França, 1919. Foto de Luciano Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.
Jardim de Luxemburgo. Paris, França, c. 1915. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Parque Buttes-Chaumont. Paris, França, maio de 1916. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

Impressos

Folhetos e estratos de catálogos se alternam com as páginas manuscritas da caderneta de Ferrez, além de recibos de hotéis e magazines e anúncios de aparelhos e produtos como uma nova lâmpada de arco, composta de quadrantes articulados, para trabalhos fotográficos de todos os tipos. Chama a atenção nesse conjunto o anúncio do Appareil Pathé-Enseignement (type Mundial A.C), voltado ao ensino do cinema nas universidades, escolas, faculdades. Esse aparelho integra a tendência mais ampla da produção de filmes pedagógicos por patrocinadores, produtores ou distribuidores, entre eles a Pathé (empresa representada pelos Ferrez), que, a partir dos anos 1910, paralelamente aos filmes de geografia, física ou botânica, aluga e vende tais equipamentos. A relação de amizade e profissional mantida por Marc Ferrez com astrônomos e professores do Observatório Nacional poderia ser mais um motivo para a inclusão desse impresso no caderno.

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Manuscritos

Se uma das funções primordiais dos arquivos e da palavra escrita foi assegurar o valor dos contratos, selar as relações comerciais, registrar a circulação de bens e valores, no século XIX, em plena revolução industrial na Inglaterra e na França, o aprimoramento da contabilidade, em compasso com a estatística, demografia e outros campos de conhecimento leva a um investimento na organização das firmas e seus arquivos. Adquirido em uma papelaria comercial, o caderno traz colunas nas páginas, prontas à função de controle e que serviriam aos lançamentos e movimentação de caixa. Nele se combinam agenda de bolso e livro de registro, incluindo encomendas de caráter privado, notas de despesas pessoais, movimento de entrada e saída de capital, e controle do acervo de negativos das coleções do fotógrafo e de seu filho Julio. Na primeira página utilizada por Marc Ferrez, a entrada do pagamento recebido da senhorita Bravaix, em 8 de agosto, parece definir as próximas anotações, expectativa não confirmada pela alternância com outros tópicos, como a lista de compras para Malia, nora do fotógrafo, uma janela para os hábitos refinados das camadas superiores, de conhecida matriz francesa, e a relação de negativos da “Coleção Marc Ferrez” que, se não estranha aos seus negócios, não é pertinente, de todo modo, à rotina contábil.

Août 8 Reçu de Mlle Bravaix (8 de agosto). Recebido da senhorita Bravaix. [Caderno de contabilidade]. Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.
Pour Malia. [Caderno de contabilidade]. Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.
Collection Marc Ferrez [Caderno de contabilidade]. Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

As paisagens europeias de Marc Ferrez
Claudia Beatriz Heynemann

 

Entre as páginas finais desta caderneta de Marc Ferrez, preenchida nos últimos anos de sua longa temporada europeia, sucedem-se prospectos, páginas de catálogos com artigos de imediato interesse para o fotógrafo, como o de uma nova lanterna especial para projeções a cores. O anúncio aludia à expansão progressiva da fotografia colorida e à consequente tendência de projetar os clichês, que sofria a limitação das lanternas de projeção comuns, dado que o calor da fonte luminosa alterava muito frequentemente seus positivos: “por meio de um dispositivo especial do sistema ótico, essa lanterna, construída especialmente para esse fim, permite obter uma aeração suficiente que evita o calor e, portanto, a deterioração dos clichês”. 

A coleção de cadernos, e essa caderneta em particular, mescla a constante atividade profissional de Ferrez com a passagem por hotéis, restaurantes, magazines, e permite-nos pensar nos mundos e territórios em que ele se moveu, nos espaços, paisagens, em diferentes temporalidades. Ferrez produz vistas da Europa, enumeradas para controle, identificadas como “Collection Marc Ferrez”, precedidas pela “Collection de Jules”, em referência a Júlio Ferrez, seu filho. As caixas numeradas contêm a classificação por cidades e logradouros, composições – como a chegada, a entrada, o caminho. Monumentos, igrejas, jardins. Também “uma brasserie”, a catedral ao lado, uma sinagoga estão entre as tomadas de Ferrez, realizadas em cidades da França, Itália, Suíça, Holanda.

 

Amsterdã, c. 1913. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Uma última caixa é antecedida pela anotação “Rio” e embora inclua Petrópolis e até São Paulo, a cidade predomina, com a praia de Santa Luzia em 1920 e 1922, Copacabana, Jardim Botânico, avenida Niemeyer, Santa Teresa, “vista tirada do morro do Pão de Açúcar”, e “Botafogo, do morro da Viúva”. Nota-se ao menos três menções ao Observatório Nacional, em São Cristóvão, instituição a que pertencia o astrônomo e amigo Henrique Morize, cuja encomenda ocupa uma página do caderno, incluindo “chambre d'augmentation 4 x 12 pour 18 x 24; 1 chambre claire a prisme doré; 1 objectif distance focale 75 mm, 1 oculaire specral p projectrix 0,35”, entre outros itens a serem adquiridos em casas especializadas. Uma lista praticamente similar é assinada pelo também astrônomo Domingos Costa com a indicação dos mesmos endereços de Chez Nachet, no número 17 da rue Saint-Séverin, em Paris, ou na Chez Pelin. Sabe-se que em março de 1922, Morize visitou o velho amigo na França.1 Rastros desse encontro estão na estereoscopia daquele ano intitulada “Fontainebleau – a coté du palais”, em referência a esse palácio real situado no norte da França, destino consagrado e obrigatório para os viajantes. De perfil, sem olhar para a câmara, Henrique Morize posa, dando um outro sentido à tomada realizada nesse cenário, sugerindo a produção privada, a fruição turística, o anonimato de ambos nessa cena.2

 

Henrique Morize no Palácio de Fontainebleau. Foto de Marc Ferrez, França, 1922. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Embora o inventário das caixas de negativos não se faça acompanhar das imagens correspondentes, convidando o leitor a um segundo passo, à medida que percorremos os títulos, figuramos as paisagens, estabelecemos relações entre o que conhecemos da extensa produção de Ferrez e da fotografia oitocentista brasileira. A construção desses interstícios já instaura um movimento, a viagem, por suposto, das inferências que provocam, criando sucessões ou saltos, conforme se confrontam aqueles lugares. Não menos importante, destaca-se um formato, o da estereoscopia, experiência imersiva que gozou de grande popularidade: para muitos, um dispositivo que prenuncia o cinema. Sobressai também o subtítulo de algumas caixas, a referência às vues couleurs, tanto na coleção de Júlio quanto na de Marc, obtidas pelo processo do autocromo.

O período em que esse caderno o acompanhou é também o dos últimos anos de sua vida, dedução reforçada pelos lançamentos, controle de fluxo de caixa, registrados em junho de 1921, março e abril de 1922 e por um formulário impresso para chamadas eletrônicas que traz a data de janeiro de 1922. Em agosto daquele ano, ele desembarca no Rio de Janeiro, vindo a falecer no ano seguinte. Ao longo desse tempo, dedicou-se a produzir autocromos, coerente com seu interesse pelas inovações técnicas, que iria se expressar exemplarmente em iniciativas anteriores, como a comercialização de equipamentos de cinema em sua loja, a partir de 1905. No entanto, para Maurício Lissovsky, “não foi apenas o tino comercial do empresário que se deixou afetar por esse novo estado da imagem, o olhar do fotógrafo também foi atravessado por ele. Afinal, a fotografia como espetáculo – lanterna mágica, estereoscopia, grandes álbuns, panoramas, exposições – sempre havia lhe interessado mais que o retratismo miúdo do estúdio burguês”.3 É possível, portanto, explicar o interesse de Ferrez pelo autocromo como resultado da entrada do cinema em suas atividades, mais do que em razão da evolução da técnica fotográfica. Tampouco seu aparente objeto, os locais a que se referem, seriam “suvenires de terras estrangeiras”, diz o autor, para quem, diante das incessantes imagens planas da guerra, reproduzidas em periódicos, um anseio de interioridade teria gerado “imagens-resíduos, entre o sonho e a recordação, cuja localização geográfica pouco importa”.4

 

Anúncio de colônias de férias vinculadas à associação dos cooperativados. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

 

Contudo, essas paisagens ou localizações geográficas – mesmo que não coincidissem estritamente com o mundo dos roteiros turísticos, cartões-postais e colônias de férias, à beira-mar ou na montanha, anúncios de restaurantes e cafés, tais como os que encontramos na caderneta – correspondiam de alguma forma ao que as paisagens e mesmo o turismo são: uma irrealidade recortada do cotidiano, aquilo que tornou imperioso, desde o século XVIII, o advento das férias, do lazer, das viagens, e até da crença nas estações de cura (às quais o próprio Ferrez iria recorrer). É ainda nesse artigo, que Lissovsky nos lembra das ondas de tédio que percorrem os habitantes de centros urbanos desde o século XIX, como escreveu Walter Benjamin, e para as quais a fotografia, e depois o cinema, pareciam ser a saída. É um Ferrez melancólico, que vive sua desolação no Rio, que se refugia do que chama a sua “vida idiota”, na produção dos autocromos.5

"Naquele mundo de antes da Grande Guerra, cujo deflagrar marcou o começo de tantas coisas que ainda mal deixaram de começar", o tédio e a morte espreitam a estação de cura para tuberculosos, dando lugar à avidez por atividades incessantes, que podiam se tornar excessivas, frenéticas: 

A paixão pela fotografia transformara-se em mania geral que se prolongara por semanas e meses [...]. De repente faziam questão de revelar as suas fotografias, sozinhos. A câmara escura que se achava à disposição dos pensionistas nem de longe bastava para satisfazer as necessidades. As janelas dos quartos e as portas de sacada eram então revestidas de cortinas pretas e, à luz de lâmpadas vermelhas, os amadores lidavam com banhos químicos [...]. Não tardaram em desinteressar-se da fotografia simples. Entrou a moda dos instantâneos a magnésio e das fotografias coloridas pelo processo de Lumière. Começaram então a deleitar-se com retratos de pessoas que, bruscamente surpreendidas pelo relâmpago de magnésio, mostravam os olhos fixos e os rostos lívidos, contraídos, de cadáveres de assassinados que alguém tivesse assentado numa cadeira, depois de lhes abrir os olhos.6

Nesse trecho de A montanha mágica, romance de Thomas Mann, o espelhamento dessa sociedade que vive o crepúsculo da belle époque, o estilhaçamento de certezas iluministas, entre outros dilemas da modernidade, dispersa-se entre as imagens, sobretudo retratos, que marcam a crescente geração de registros amadores, absorvendo os aprimoramentos, como a introdução dos flashes, com maiores possibilidades de tomadas noturnas e internas. Insere-se nessa lógica o processo dos Lumière, ápice da empreitada que começa nos anos 1860, e que levaria à realização da ambicionada fotografia colorida. Já o processo iniciado na década de 1880, com a chegada ao mercado de câmeras e equipamentos calcados na alta sensibilidade à luz das emulsões de gelatina e prata, permitiria a produção de instantâneos, popularizados entre profissionais e apreciadores em geral.

Era possível, agora, o domínio de etapas antes reservadas aos fotógrafos em seus estúdios, abrindo-se um capítulo decisivo na história da imagem técnica e do lugar que ocuparia na vida social e privada. O público amador continuaria a ser contemplado com a venda em larga escala dos autocromos e a reintrodução da estereoscopia, iniciativas que, com as lanternas mágicas e o cinema, mergulhavam o espectador em um universo onírico de cores e da mágica do instantâneo: “salas de estar das residências passaram a ser espaços de fruição e compartilhamento dessas imagens, com visores especiais que permitiam a visualização das estereoscopias em cores e em preto e branco”. Esses produtos foram experimentados e vendidos por Marc Ferrez e filhos.7

A hegemonia dos Lumière no mercado dos autocromos é constatada nas páginas impressas que integram o caderno de Ferrez, propagandas e fórmulas encabeçadas pelos Établissements Lumière & Jougla réunis, que, entre muitos produtos, anunciam as placas de vidro autocromos, acompanhadas da fórmula do revelador concentrado, que poderia ser adquirido já preparado. Nesse catálogo, cada artigo é acompanhado pela orientação detalhada da técnica envolvida e da metodologia a ser empregada. Assim, difundiu-se o uso dos papéis coloridos e transparentes especiais, “papiers Virida”, verdes, amarelos ou vermelhos, respeitando o espectro de cores primárias que estava na base de diversas tentativas pregressas.

 

Instruções de uso dos papéis fotográficos Virida e Rubra. [Caderno de contabilidade]. Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

 

Uma longa batalha pela conquista da fotografia colorida foi travada no século XIX, até que se obtivesse um resultado prático, a começar pelos quase trinta anos em que se registraram avanços conceituais nessa pesquisa, com nomes como Louis Ducos du Hauron (1837-1920), com a proposta, ainda hoje válida, baseada na separação das cores, mas que não contava ainda com emulsões sensíveis para sua realização; o químico alemão H. E. Vogel, no início dos anos 1870, que obteve emulsões ortocromáticas (sensíveis a todas as cores à exceção do vermelho), até que, em 1891, um processo de cor radicalmente diferente foi anunciado por Gabriel Lippmann, professor de física na Sorbonne. Ele foi motivado a inventá-lo para confirmar a natureza ondulatória da luz e seu processo foi atestado pelos Lumière, quanto ao seu potencial, as ótimas cores, de grande permanência e com muito boa resolução. Ainda assim, esse processo não chegou a ser comercializado.8

Os Lumière tentaram finalmente um processo que foi denominado Chroma, comercializado como autocromo e que fornecia um único exemplar – uma transparência positiva em suporte de vidro – com cores compostas de minúsculos grãos de amido de batata tingidos de laranja, verde e azul-violeta.9 O Filmcolor, uma versão cinematográfica, foi criado posteriormente pelos Lumière, seguindo-se os aperfeiçoamentos, versões mais rápidas, como o Filmcolor Ultrarapide e o Lumicolor Ultrarapide. Finalmente, nos anos 1930, Leopold Mannes e Leopold Godowsky, que vinham pesquisando com os especialistas da Eastman Kodak, recuperaram a proposta de du Hauron nos anos 1860. O resultado foi o Kodachrome, que, com sua maior velocidade e cores mais saturadas, marcou o fim dos autocromos e da Companhia Lumière: “a era moderna da cor havia começado”.10

As estereoscopias coloridas de Ferrez foram produzidas pelo processo dos irmãos Louis e Auguste Lumière, sempre lembrados pelo cinematógrafo que apresentaram ao público em 1895. A intimidade de Ferrez com esse formato, com a experimentação no campo da imagem técnica e, certamente, como empresário da distribuição e exibição de filmes, além de espectador daqueles primeiros anos do cinema, nos conduzem a olhar para as imagens coloridas que produziu como fotogramas, trechos de uma montagem. Outras, em preto e branco, evidenciam a herança das gravuras e telas de artistas e viajantes que chegaram ao Brasil nas primeiras décadas do século XIX, entre eles Zéphirin e Marc Ferrez (pai e tio do fotógrafo). Por outro lado, as cenas de família ou de viagens poderiam se inspirar também na estética da segunda metade do século XIX, devendo-se lembrar da relação entre a pintura impressionista e a fotografia, que influenciaria a arte e o valor que lhes é respectivamente atribuído. Para Giulio Carlo Argan, assiste-se a um “enorme crescimento do patrimônio de imagens: a fotografia permite ver um grande número de coisas que escapam não só à percepção, mas também à atenção visual. O Impressionismo, estreitamente ligado à divulgação social da fotografia, tende a competir com ela, seja na compreensão da tomada, seja em sua instantaneidade, seja com a vantagem da cor”. Para a arte impressionista, enfim, além de liberada de determinadas funções documentais agora deixadas ao registro fotográfico, o uso de material fotográfico não foi um dilema, tal como “a experiência de uma imagem destituída de traços lineares, formada apenas por manchas claras e escuras” teria conduzido à “pintura de manchas, de toda a pintura de orientação realista do século XIX”.11

Da mesma forma, os autocromos, ainda que também tenham sido utilizados por fotógrafos como Alfred Stieglitz e outros que investiriam em uma linguagem artística a partir do preto e branco, não seguiram os rumos da arte contemporânea. Como afirma Mariana Newlands, a fotografia colorida ainda demoraria a constituir uma estética própria e não acompanharia a ruptura empreendida por Pablo Picasso com o quadro Demoiselles d’Avignon, no mesmo ano de 1907, quando os irmãos Lumière começaram a vender seus autocromos. Nessa fase, ela “está muito mais próxima de Monet e dos impressionistas do final do século XIX e mal parece pertencer ao mesmo mundo dos violões fragmentados (1911-1912) de Picasso e Braque”.12

O rompimento de padrões estéticos ou a incorporação de um perfil artístico não foram, de todo modo, questões que se impuseram a Ferrez e à sua extensa e sólida obra fotográfica, bem como não interferiram em sua arrojada carreira de empresário. Ainda assim, suas fotografias mais conhecidas em preto e branco ou as cenas que capturou a cores, em jardins, estações, cidades europeias, são inequivocamente belas, documentam a visualidade dessa sociedade constituída e transformada pela imagem técnica. Delineia-se também uma cartografia burguesa, demarcada a partir da experiência das viagens, pessoais ou em expedições científicas, das quais se tem notícias, fotografias, e ainda mais, estereoscopias. Ela se estrutura em cidades e lugares aos quais Ferrez atribui o nome usual, diferencia a partir de aspectos particulares, recorrendo a detalhes de caráter subjetivo, fruto da contemplação, como “uma vista de outono”, em Boulogne-sur-Mer. Lugares obrigatórios da visitação e da sociabilidade estão em Chantilly, o castelo; em Enghein, o cassino; no Vallée du Chevreuse, o porto; o cassino novamente, agora em Saint-Malo, a praia de banhos em Dinard. Uma catalogação que segue a paisagem construída nos itinerários de viagens, nos roteiros turísticos: o culto dos vultos históricos, a consolidação da ideia de patrimônio, elegendo monumentos como catedrais, castelos e museus, contemplando ainda a aleia de mimosas na estação de tratamento de Hyères. É em Chalon-sur-Saône que Ferrez se equivoca em um tema significativo, ao identificar a estátua de Nicéphore Niépce como sendo de Louis Daguerre. Nièpce dividiu o mérito e as recompensas pela descoberta da daguerreotipia, mas claramente seria Daguerre que, emprestando o nome ao invento, tomaria a dianteira entre os pioneiros da nova técnica, o que parece ter contaminado Ferrez.

 

Estátua de Nicéphore Niepce, Chalons-sur-Saône. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

 

O aperfeiçoamento da fotografia e de sua expressão a cores se identifica com a sólida crença no progresso, que seria abalada pela guerra mundial, pela epidemia de 1918, pela revolução bolchevique, pelas disputas coloniais; a “paz armada” que já se anunciava nos anos 1890 pôs fim ao otimismo fomentado por um pensamento econômico alicerçado na estabilidade alcançada após as guerras napoleônicas, a um ritmo que levou à era das ferrovias entre 1840 e 1860. Os anos de 1860 a 1895 deram continuidade a essa onda de prosperidade, “mas orientando-se agora, graças principalmente à aplicação do conhecimento científico à produção industrial, para a diversificação econômica e a exportação tanto de múltiplos bens de capital, quanto de capital em si mesmo”.13

 

Ruínas da cidade de Arras. França, 1915. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

 

À esfera da circulação de mercadorias, bens e capital, equivale a circulação das imagens, menos considerada que a instância da produção, sobretudo em relação a seus referentes externos. Assim, considera Tom Gunning, as fotografias chegariam a lugares onde esses referentes jamais iriam estar, em sua similitude ao processo econômico a que se refere a modernidade, resultante essencialmente das transformações operadas pela Revolução Industrial. Mas não se restringiria a essa dimensão. Mais do que um período, “a modernidade se define pela transformação na vida diária criada pelo crescimento do capitalismo e pelos avanços técnicos: o crescimento do tráfego urbano, a distribuição das mercadorias produzidas em massa e sucessivas novas tecnologias de meios de transporte e comunicação”.14

Característico da modernidade é ainda o vínculo entre os arquivos, a ideia de história, o Estado-nação, a vida nas metrópoles, a ascensão da bolsa e da economia de mercado, que se dá concomitante à da disseminação da fotografia. Não se pode esquecer, da mesma forma, o compromisso de realidade que nasce com o daguerreótipo, definido como espelho com memória: “foi renovando o regime da verdade, nutrindo a crença de que suas imagens são a exatidão, a verdade, a própria realidade, que a fotografia pode suplantar o desenho e a gravura em suas funções documentais”.15 A confiança no valor documental da fotografia, acrescenta Rouillé, não se apoiava apenas no dispositivo técnico, “mas em sua coerência com o percurso geral da sociedade”. Em sua vocação para o registro, a imagem técnica vem coincidir com o processo de consolidação dos arquivos nacionais, seu lugar na administração, seu papel na construção do conhecimento histórico, visto igualmente na perspectiva do progresso. Nesse sentido, toda uma série de premissas comuns aproxima a prática fotográfica e a organização dos arquivos, incluindo a identificação de indivíduos e o controle social.

O conjunto de cadernos de Ferrez comporta assim diversas camadas, como parte da própria história da fotografia e dos arquivos, em sua dupla vertente empresarial e pessoal, mostrando-se estruturado na organização que impõe aos negativos, no controle da movimentação financeira, das despesas domésticas, das fórmulas químicas, entre outros tópicos, e ainda por pertencer, hoje, a dois importantes acervos arquivísticos. Eles se relacionam com outros itens e muitos outros fundos públicos e, sobretudo, com aqueles de natureza privada que, progressivamente, foram admitidos no corpus documental dos historiadores, “não mais fontes excepcionais capazes de acrescentar um pouco de sal a uma narrativa austera ou de fornecer (enfim!) a chave do mistério da criação, mas fontes comuns, que se tenta conservar como se conservam as fontes administrativas ou estatísticas”, destacou Christophe Prochasson. Desses conjuntos documentais sobressaem as numerosas categorias ambicionadas pelos historiadores da cultura: “correspondências, diários íntimos, cadernetas e agendas, dossiês de trabalho e dossiês de imprensa, notas de toda espécie etc. Essa documentação deve constituir uma base arquivística útil para a história da construção de uma obra ou de uma personalidade”.16

Doutora em história social, pesquisadora no Arquivo Nacional, editora do site O Arquivo Nacional e a História Luso-Brasileira. Publicou, entre outros títulos, Floresta da Tijuca (1995); Retratos modernos (2005), com Maria do Carmo T. Rainho, e As culturas do Brasil (2010). Curadora de exposições e colaboradora do portal Brasiliana Fotográfica.

Notas

1 CERON, Ileana Pradilla. Marc Ferrez: uma cronologia da vida e da obra. 1. ed. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2019, p. 105. Ainda como lembra Ceron, em outubro de 1912 o fotógrafo havia acompanhado os astrônomos liderados por Henrique Morize, a Minas Gerais, para a observação do eclipse solar.

2 Marc Ferrez. Henrique Morize no Palácio de Fontainebleau. Fontainebleau, França, 1922. Autocromo/Corante e prata. Estereoscopia em vidro. IMS/RJ. 007CX222-03.JPG

3 LISSOVSKY, Maurício. Ócio e cinema na fotografia de Marc Ferrez. Galáxia, São Paulo, n. 45, p. 79, set./dez. 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/1982-25532020347859

4 Ibidem, p. 90.

5 NEWLANDS, Mariana. Longe de um estilo tardio: a liberdade das cores. In: BURGI, S. (org.). Marc Ferrez: território e imagem. São Paulo: IMS, 2019, p. 155.

6 MANN, Thomas. A montanha mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

7 BURGI, S. (org.). Marc Ferrez: território e imagem. São Paulo: IMS, 2019, p. 117. 

8 HANNAVY, John (ed.). Encyclopedia of nineteenth-century photography. v. 1. A-I Index. New York: Routledge, 2008, p. 317-318.

9 AUTOCHROME process: 1907-1930s. In: The Historic New Orleans Collection. Disponível em: https://www.hnoc.org/virtual/daguerreotype-digital/autochrome-process.

10 HANNAVY, John (ed). Encyclopedia of nineteenth-century photography, op. cit., p. 318.

11 ARGAN, G. C. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 80.

12 NEWLANDS, Mariana, op. cit., p. 158.

13 SEVCENKO, Nicolau. O cosmopolitismo pacifista da belle époque: uma utopia liberal. Revista de História, n. 114, p. 85-94, 1983, p. 88. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/62063.

14 GUNNING, Tom. O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema. In: CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. (org.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p. 39.

15 Cf. ROUILLÉ, A. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo: Senac, 2009, p. 51.

16 PROCHASSON, Christophe. Atenção: verdade! Arquivos privados e renovação das práticas historiográficas. Rio de Janeiro, Estudos Históricos, v. 11, n. 21, 1998. Dossiê “Arquivos pessoais”. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2064.

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Este projeto é uma parceria entre o Arquivo Nacional e o Instituto Moreira Salles.