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Cadernos de

Marc Ferrez

[Processos e materiais]

Fundo Família Ferrez
Acervo do Arquivo Nacional

 

A produção industrial de equipamentos e materiais, no final do século XIX, contribuiu para a simplificação e difusão mundial da prática fotográfica. A oferta crescente de papéis, chapas, câmeras, contudo, também exigiu dos antigos profissionais, habituados à produção de seus materiais em laboratório, esforços para dominar procedimentos que variavam de acordo com cada fabricante. Este caderno evidencia a preocupação do experiente Ferrez em reunir e conservar em um único lugar, fórmulas e instruções de procedência e épocas diversas, sejam fornecidas pelos então fabricantes, consolidadas nos boletins das sociedades de fotografia ou, ainda, resultantes de sua própria prática.

Caderno digitalizado

 

Marc Ferrez. [Processos e materiais]

Código de Referência do Arquivo Nacional: BR_RJANRIO_FF_MF_1_0_02_6

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Chapas de vidro

Apesar de ter sido empregado por Abel Niépce desde 1847 para gerar negativos com albumina, foi a partir de 1851, com Frederick Scott Archer, que o vidro, sensibilizado manualmente com uma solução de colódio úmido, ganhou popularidade na fotografia, tornando-se o suporte por excelência para a captura das imagens. A substituição do colódio pela emulsão em gelatina com brometo de prata, em 1871, por Richard Maddox e, sobretudo, a industrialização e aperfeiçoamento das novas chapas, desde os anos 1880, colaboraram para a difusão mundial da prática fotográfica. Embora o aparecimento dos filmes flexíveis no início do século XX tenha ocasionado o declínio de seu uso, as chapas de vidro continuaram a ser utilizadas até a década de 1970 em áreas que demandam imagens com alto grau de precisão, como a astronomia. No arquivo de Marc Ferrez, no Instituto Moreira Salles, além de negativos e positivos em vidro, encontramos as caixas originais das chapas, de fabricantes, formatos e emulsões variados.

Rótulo de chapas de clorobrometo de prata para diapositivos em tons pretos. Formato 6 x 13 cm. Société Anonyme des Plaques et Papiers Photographiques. A. Lumière et ses fils, c. 1910. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Rótulo de chapas de lactato de prata para positivos sobre vidro e projeção. Formato 8 1/2 x 10 cm. Fábrica de chapas Guilleminot, c. 1900. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Rótulo de chapas autocromos Lumière. Formato 13 x 18 cm. Union Photographique Industrielle. J. Jougla. Établissements Réunis Lumière et Jougla, c. 1920. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Rótulo de chapas de gelatina e brometo de prata para diapositivos com tons quentes. Formato 6 x 13 cm. Union Photographique Industrielle. A.Lumière et ses fils, c. 1912. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Rótulo de chapas secas Sigurd. Formato 6 x 13 cm. Richard Jahr Fabrik, s.d. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Rótulo de chapas instantâneas de gelatina e brometo de prata. Formato 6 x 13 cm. J. J. Jougla. Union Photographique Industrielle. Établissements Réunis Lumière et Jougla, c. 1920. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

Projeções em lanterna

A obra de Marc Ferrez não circulou, em sua época, apenas por meio de fotografias impressas, em álbuns temáticos ou em exposições. A presença, no arquivo do fotógrafo, de diversos conjuntos produzidos para exibição por lanterna mágica, evidencia que a projeção foi um meio corrente de difusão de suas imagens. As primeiras fotografias projetadas por Ferrez foram realizadas no âmbito da Comissão Geológica do Império e ilustraram a conferência que o chefe dessa expedição, Charles Frederick Hartt, proferiu em novembro de 1875, no Recife. Ao longo dos anos, muitas outras aulas e apresentações foram acompanhadas das imagens de Ferrez. Com o seu envolvimento no nascente setor cinematográfico, na primeira década do século XX, Ferrez investiu na produção de vistas “fixas”, para compor os programas diários de seus cinemas, ao lado das vistas “animadas”, como também eram chamados os filmes. Dada a participação do fotógrafo na distribuição e montagem de programas cinematográficos Brasil afora, é provável que suas imagens projetadas tenham tido ampla circulação nacional. O papel da lanterna mágica na obra de Ferrez, assim como a relevância desse meio na difusão da cultura fotográfica no Brasil, ainda é um tema que merece estudos aprofundados.

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Ferrez e as estereoscopias

Ao longo de sua longeva atuação como fotógrafo, Marc Ferrez não se furtou a experimentar diferentes processos de produção de imagens, dentre eles, a fotografia estereoscópica. As estereoscopias, pares de imagens de uma mesma cena que, vistas em um visor binocular, produzem a ilusão de tridimensionalidade, conheceram ampla disseminação após a Exposição Internacional de Londres, em 1851.

O interesse de Ferrez pelas estereoscopias está patente no caderno Processos e materiais no qual encontram-se anúncios das câmeras sténo-jumelle, fabricadas por L. Joux; anotações referentes aos procedimentos que envolviam a produção de estereoscopias sobre vidro; listas de itens a serem encomendados, como os chassis estereoscópicos da empresa de Charles Mendel; um estereoscópio 8 x 16; uma câmera dupla, “jumelle”, de descentramento múltiplo, da marca Hermagis, dentre muitos outros.

A produção de estereoscopias atravessou a carreira de Ferrez por décadas desde o trabalho para a Comissão Geológica do Império, entre 1875 e 1878, até os registros da Exposição do Centenário da Independência do Brasil, em 1922. Importante lembrar, também, que, a partir de 1912, ele experimentou as estereoscopias coloridas, empregando as placas autocromos Lumiére.

Exposição do Centenário da Independência do Brasil: Pavilhão das Indústrias. Rio de Janeiro, 1922. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles
Exposição do Centenário da Independência do Brasil – Palácio dos Estados. Rio de Janeiro, 1922. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Exposição do Centenário da Independência do Brasil – Pavilhão da Agricultura. Rio de Janeiro, 1922. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Exposição do Centenário da Independência do Brasil – Pavilhão da França, atual sede da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, 1922. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Exposição do Centenário da Independência do Brasil – Pavilhão da Bélgica. Rio de Janeiro, 1922. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.
Exposição do Centenário da Independência do Brasil – Pavilhão da Inglaterra. Rio de Janeiro, 1922. Foto de Marc Ferrez. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

Je suis le cahier de monsieur Marc Ferrez
Pedro Karp Vasquez

 

Este caderno de Marc Ferrez é uma verdadeira preciosidade. Não existe qualquer exagero nessa afirmação, pois é um documento sem igual, espelhando os processos fotográficos empregados pelo profissional de maior destaque no Brasil oitocentista. Um rico manancial que certamente subsidiará diversos estudos em um futuro próximo, permitindo uma análise mais técnica e menos impressionista de nossa fotografia clássica.

 

Instruções para lavagem das chapas e anúncio do Formosulfito Lumière para a preparação de reveladores. [Processos e materiais], p. 168-169. Marc Ferrez. Arquivo Nacional, Fundo Família Ferrez.

 

Exemplos semelhantes são inexistentes ou, na melhor das hipóteses, ainda desconhecidos, de tal forma que somente as anotações pioneiras de Hercule Florence – judiciosamente estudadas e divulgadas por Boris Kossoy – lhe podem ser comparadas. Dois marcos fundamentais, duas pedras de toque incontornáveis: as notas de Florence no começo do século XIX e este caderno de Ferrez no final desse período e início do século XX.

A primeira coisa que impressiona no caderno aqui intitulado Processos e materiais é o rigor de sua qualificação técnica: profissional amplamente reconhecido em seu tempo tanto no Brasil quanto no exterior, ele se preocupa até o fim de sua carreira fotográfica (quando já se consagrava quase que exclusivamente à exibição cinematográfica) em estudar novas fórmulas e procedimentos, além de se manter a par dos equipamentos para a tomada e o processamento de fotografias. Após décadas de trabalho bem-sucedido com os químicos tradicionais, ele se preocupou em colar em seu caderno um artigo sobre o “Formosulfite Lumière”, que propunha a substituição do sulfato de sódio e dos álcalis nas fórmulas dos reveladores; assim como se interessou por um estranho “fixador a seco para papéis” que se apresentava sob a forma de um pó branco, apesar de ter a mesma base química dos fixadores líquidos convencionais, o hipossulfito de sódio. Preocupou-se também em tomar notas e colecionar recortes sobre o processamento de fotografias coloridas e das películas cinematográficas Pathé, das quais era representante no Brasil. Ferrez era, em suma, um incansável pesquisador, o perfeito cozinheiro das imagens técnicas.

Edifícios da Associação dos Empregados no Comércio e do Cine Pathé na Avenida Rio Branco. Rio de Janeiro, 1921. Autor não identificado. Acervo Instituto Moreira Salles.
Praça Floriano, conhecida como Cinelândia, com os cinemas Glória, Pathé Palace e Capitólio. Rio de Janeiro, 1928. Foto de Augusto Malta. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

Na verdade, Marc Ferrez era bem mais do que isso. Único profissional a ser agraciado com o título de “Fotógrafo da Marinha Imperial”, ele também atuou como empresário (representante de importantes firmas francesas, como a Pathé, a Gaumont e a Lumière), editor de álbuns e cartões-postais fotográficos, comerciante de equipamentos e materiais fotográficos e cinematográficos e, finalmente, como exibidor cinematográfico, fundador dos cinemas Pathé. O último dos quais, o Pathé Palace, criado por seus filhos, Julio e Luciano, em 1928, na Cinelândia, permaneceu em funcionamento contínuo até 1999, quando a insegurança urbana provocou o ocaso dos cinemas de rua, fazendo-os migrar para os shopping centers. Só para chorar: das 198 salas de rua, subsistem hoje na cidade do Rio de Janeiro apenas dez.

Este caderno tem caráter eminentemente técnico, muito embora contenha breves e esparsas anotações a respeito de compras a fazer, para si mesmo (“chemises pour moi”) ou a esposa (lembrando que os itens a ela destinados deveriam ser adquiridos no Magasin du Louvre). É, em essência, um aide mémoire técnico e comercial, no qual o comerciante listava equipamentos e material de consumo encomendados às empresas, quase sempre francesas, mas entre as quais figurava a inglesa Dallmeyer, que se orgulhava de ser a primeira a fabricar as “Portrait Lens” de Petzval, em 1866. São referências importantes para o estudo da história da fotografia e do cinema no Brasil, sem dúvida alguma, porém muito mais valiosas são as anotações feitas pelo fotógrafo Ferrez, pois ajudam a esclarecer seu modus operandi e permitirão a comparação com os procedimentos empregados por outros profissionais estrangeiros de renome contemporâneos seus que eventualmente também tenham anotado de forma criteriosa seus procedimentos ao fotografar e ao processar e difundir as imagens por eles realizadas.

 

Papel timbrado da Casa Marc Ferrez, que destaca a representação das Objetivas Dallmeyer, c. 1900. Marc Ferrez. Fundo Família Ferrez/Arquivo Nacional.

 

Contribui muito o fato de que a caligrafia de Marc Ferrez seja legível, malgrado as letrinhas pequenas e as linhas pouco espaçadas. Assim, o pesquisador interessado não precisará ser um especialista em paleografia para decifrar a escrita do mestre, mesmo porque a disponibilização do conteúdo do caderno pela internet facilita enormemente a leitura, já que o leitor não precisa mais apelar para as velhas lupas, visto que tem a possibilidade de aumentar bastante a imagem na tela do computador com impecável resolução, podendo ler o texto palavra por palavra se assim o desejar.

Marc Ferrez copiou muitas fórmulas fotográficas, listando químicos que os nascidos na era digital certamente desconhecem, mas que deixam nostálgicos aqueles que velhos o bastante para ter preparado pessoalmente seus reveladores, adicionando mais metol para obter finas nuances nos meios-tons, ou hidroquinona, caso desejassem incrementar o contraste. A existência entre essas notas de “viragens a base de ouro”, ou uma “viragem perpétua”, comprova o impecável profissionalismo de Ferrez, que não se restringia apenas ao ato fotográfico (existem também anotações referentes aos tempos de exposição ideal para determinadas placas), prolongando-se ao processamento (são diversas as referências aos fixadores) e à apresentação das fotografias (conforme atesta o grande número de cartões-suporte para montagem que ele encomendava). Não é de se admirar, portanto, que suas fotografias figurem entre as mais bem conservadas imagens oitocentistas.

 

Tabela comparativa dos tempos de aparecimento de contornos e revelação de chapas. Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles.

 

Contudo, o momento não é o de detalhar minuciosamente o conteúdo deste caderno, coisa que será feita pelos pesquisadores que certamente encherão centenas de páginas a partir das 140 (nem todas preenchidas) deste inestimável documento. A ocasião é sim a de louvar o Arquivo Nacional e o Instituto Moreira Salles pela generosa e fundamental iniciativa de disponibilização livre do caderno de Marc Ferrez para o grande público e, em especial, para a comunidade de pesquisadores, estudiosos e historiadores da fotografia. Coisa que faço agora com a devida ênfase, pois esse é mais um grande feito que salienta a importância do Fundo Família Ferrez do Arquivo Nacional ao mesmo tempo em que reitera a posição do Instituto Moreira Salles como a mais importante instituição a apoiar a fotografia no Brasil, em todas as suas dimensões.

Para concluir resta apenas justificar o título em francês deste artigo, que os amantes das artes plásticas já perceberam se tratar de uma referência ao livro Je suis le cahier de monsieur Picasso.1 Foi uma maneira de chamar a atenção para o fato de que Marc Ferrez tomava suas notas em francês, aproveitando o ensejo para explicar por que ele o fazia. Ao contrário do que pensam alguns, Marc Ferrez não era francês e sim carioca, embora filho de franceses, Marie Lefebvre e Zéphirin Ferrez, escultor, medalhista e professor da Academia Imperial de Belas Artes. Após o súbito e misterioso falecimento do casal em julho de 1851, Marc Ferrez (então com sete anos e meio de idade) foi enviado para viver em Paris com Joseph Eugène Dubois, também escultor e gravador de medalhas grande amigo de Zéphirin. Há, no entanto, controvérsia a esse respeito, bem como em relação ao tempo em que ele teria permanecido na França, se dez ou quinze anos. Conforme esclareceu Ileana Pradilla Ceron em seu criterioso estudo biográfico: “Diversas são as teorias sobre a data e as circunstâncias do retorno de Marc Ferrez ao país, mas é provável que tenha desembarcado no Rio de Janeiro entre 1860 e 1865”.2

Seja como for, o fato é que Marc Ferrez foi educado em francês adquirindo o forte sotaque do qual os franceses normalmente têm grande dificuldade de se livrar, e que o levava a não gostar de falar ao telefone, já que poucos interlocutores o entendiam bem. Assim, não só tomava todas as suas notas pessoais em francês, como o utilizava também na maior parte de sua correspondência comercial, visto que – como foi dito – era representante de diversas firmas francesas, dentre as quais vale destacar a Société Lumière, pelo fato de ser ela fabricante dos Autochromes, positivos coloridos que ele próprio utilizou em seus derradeiros anos de vida quando praticava a fotografia apenas em caráter “amador”. Porém, como os termos técnicos tendem à universalidade, a leitura deste caderno de Marc Ferrez não deve ser difícil para os pesquisadores e historiadores brasileiros, mesmo porque agora existe o recurso do tradutor instantâneo digital, inaceitável para textos literários, mas lícito em se tratando de material técnico.

Escritor e fotógrafo, autor de trinta livros. Trabalha como editor de literatura brasileira na editora Rocco. Como administrador cultural, foi responsável pela criação do Instituto Nacional da Fotografia da Funarte e do Departamento de Fotografia, Vídeo & Novas Tecnologias do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Foi também diretor do Solar do Jambeiro, em Niterói. (Foto: Paula Sampaio)

Notas

1 Publicado no Brasil pela editora Record, em 1986, com o título de Os cadernos de Picasso.

2 CERON, Ileana Pradilla. Marc Ferrez: uma cronologia da vida e da obra. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2019, p. 23.

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Este projeto é uma parceria entre o Arquivo Nacional e o Instituto Moreira Salles.