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Linoca Souza (SP)

Ilustradora e artista visual, bacharel em Artes Visuais pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Em suas produções interdisciplinares, investiga por meio de ilustrações, pinturas e mais recentemente fotografia e performance, temáticas de cruzam miscigenação, desigualdades de gênero, social e étnica.

I

Búzios, espadas e outros mistérios para autocuidado e fuga da ilógica em períodos de isolamento social

 

 

Eu acredito que o Axé está em tudo! A força vital da energia criativa nos cerca e pulsa em todos, ainda que se esforcem para esmagá-la.

O objetivo do que chamo de ilógica capitalista e das táticas de embranquecimento, é e sempre foi se concentrar em abater os meios naturais que envolvem a todos. Seja setorizando humanos, avaliando a natureza, dividindo elementos naturais ou elencando espaços com separações em graus de superioridade e inferioridade, como exatas, biológicas, ou humanas, por exemplo. A ilógica dessa mão invisível que tenta nos dividir está sempre presente.

A ideia de disciplinar os que habitam o planeta, inserindo-os em um falso contexto de universalidade, tende a falhar. Seja porque ninguém é igual, seja por que isso só envolve um único grupo de indivíduos que se beneficiam, os que criam apoiam essa ilógica.

Uma vez que o Axé está em tudo e todas as energias universais estão conectadas, a tendência de qualquer modelo que tente normatizar economia, crença, orientação sexual, ou qualquer sentimento e ser vivo, quebra. Porque a vida existe por suas próprias razões, ainda que o neocolonialismo continue insistindo em tentar uniformizar isso.

Ações como as demarcações de territórios, destruição de terreiros, invasões de morros e assassinatos de jovens negros, resultam no retorno de força e sentimentos aos que a desrespeitam e na resistência de quem a compreende em seus caminhos. Isso porque as encruzilhadas da vida são inúmeras.

As culturas que resistem à essa lógica normativa, se reinventam e não se esvaziam, seja como nos longos períodos de escravidão, onde o sincretismo foi ferramenta estratégica de preservação da fé, seja no período de isolamento social, onde o silêncio prevalece e ensina cada indivíduo a se reinventar.

E é esse silêncio nos tira da ilógica do outro e nos envolve em nosso próprio tempo. Não que a existência de um vírus, ou qualquer situação que nos obrigue a ficar em casa para autopreservação seja positivo, não falo aqui sobre agradecer pela experiência de quarentena, isso seria desrespeitoso com quem precisa trabalhar nas ruas nesse momento e também com as pessoas que desencarnaram nessas circunstâncias. Mas é sobre aprender com o silêncio, uma vez que ele está dado. Aprender a se colocar distante de uma realidade não natural e reaproximar-se de si mesmo.

Nesse período andei observando as plantas em minha casa, uma amiga me ensinou sobre a importância de uma intenção para cada planta que trazemos para nosso lar, ou para cada muda que plantamos. Quando você tem um ser vivo e não se esquece que ele é um ser vivo, você se dedica a ele e isso te faz olhar para si, lembrar-se também de cuidar de si mesmo e que você também é um ser vivo. Observar as plantas tem me causado a lembrança, olhar as plantas me ajuda no autoconhecimento e a me desligar de conexões que não são baseadas em minhas próprias escolhas.

Aqui falo sobre plantas, espadas, cactos, suculentas e outros seres que dividem espaço comigo, mas a energia vital existe também nos filhos, animais domésticos, ou familiares, já que a energia vital habita em todos. Pensando nas plantas, expandindo isso para florestas, matas e resistências de diversos povos e seus descendentes, as existências que não giram em torno do outro ainda geram a cólera de quem tenta destruir cosmovisões tão fortes e suas organicidades. Onde não há relógios ou calendários para controle e com finalidades totalmente capitalistas. E perder o controle é um grande problema para quem deseja dominar a tudo.

Mas isso não significa que a organicidade é descontrolada, ela se regula por si mesma, está no Axé, que é movimento, onde um também são vários. Onde o dinamismo de quem resiste é vital e também gira por seus próprios meios, meios que podem ser mutáveis e não cabem em sistemas econômicos de desvantagens, padrões hegemônicos ou na ilusão do achatamento da terra.

II

Búzios, espadas e outros mistérios para autocuidado e fuga da ilógica em períodos de isolamento social

 

Estive me lembrando de quando li Geografia da Fome, livro de Josué de Castro, escrito na década de 1940. Me encantou observar os comparativos das relações entre os espaços ocupados por humanos em cada região do país e em como a natureza, assim como a economia interferiam diretamente na dieta do povo. Lembrei-me dos povos indígenas citados na ocasião do livro e sobre como havia uma observação do autor acerca da compensação do sol em seus corpos, auxiliando-os em seu desenvolvimento físico, especialmente na infância, apesar da escassez de cálcio na dieta, devido à impossibilidade de se criar pastos para bovinos em regiões específicas, devido à condição climática.

Eu chamo de ação vital e espiritual, o Axé, a energia natural, comprovada e estudada cientificamente. Acredito que quando um cientista estuda a vida em suas diversas manifestações está estudando também o Axé, que está na sábia capacidade da natureza de permanecer se desenvolvendo e atuante em todas as vidas, iluminando-as, compensando e eliminando o que é necessário, em constante equilíbrio entre os diversos corpos. Já viram como é maravilhoso o caminho das minhocas na terra? Se alimentando na mesma medida em que movimentam a terra e colaboram para o crescimento do que é plantado? Isso é Axé, essa sabedoria que move a tudo em escalas maiores e menores.

Os povos ancestrais, indígenas e afro diaspóricos aprenderam a se reformularem e manterem-se atuantes, dentro das diversas transformações trazidas pelo que não é natural, pelo homem branco e vindo do e pelo que é natural, pelas respostas da natureza. Aprender a zelar pela sua própria cultura e história é um exercício sem fim de aprender sobre o equilíbrio da natureza.

Me recordo de uma vez em sala de aula, durante minha graduação, acho que após algum debate sobre antropologia cultural, em que escutei uma colega de classe falar sobre como achava triste os indígenas perderem sua cultura ao se misturarem com "a sociedade”, usarem celulares e tênis, por exemplo e sobre como aquilo os faziam perderem suas identidades (?).

Veja que ela falava sobre povos originários, pessoas que foram atacadas por centenas de anos, sociedades que foram divididas e desapareceram lutando e que as que vivem até hoje permanecem resistindo e ainda que em espaços determinados restritos, consegue manter sua cultura viva. Olhamos para esses povos e sabemos que são indígenas, não importa quantos celulares estejam utilizando, qual roupa estejam usando, quantas conexões e elementos comuns ao ocidente, o que é maravilhoso, há características que não se perdem. Então, se há alguém que precisa de cuidados sobre como manter uma cultura viva com certeza não são esses povos. Inclusive, infelizmente, uma parcela grande da população não têm a oportunidade de saber sobre seus antepassados.

III

Búzios, espadas e outros mistérios para autocuidado e fuga da ilógica em períodos de isolamento social

 

Gosto muito da música "O mais velho", de Paulo César Pinheiro, interpretada por Glória Bonfim. A estrofe inicial diz:

 

O velho é o dono do tempo

Não pára nunca de andar

E todo o peso do mundo

Carrega em seu xaxará...

 

Durante a quarentena venho pensando muito nas transformações da terra, onde as curas habitam e o silêncio permeia, é na terra que tudo inicia e finda e há em nós mortes internas que precisam acontecer. Omolu, nas religiões de matriz africana, é o Orixá, a energia, que trabalha nessa relação de vida e morte, com seu xaxará. Dentro dessa cosmovisão nosso encontro com ele ao fim da vida é inevitável, mas também durante a vida, em todas as transformações, mortes e nos renascimentos, onde Obaluaiê se revela após cada ciclo iniciado e encerrado, estamos infinitamente vivendo e morrendo o tempo inteiro.

Todas as células que morrem e nascem em nós diariamente estão diretamente conectadas a essas energias, assim como as folhas na terra que são decompostas e nas que se fazem novamente nos caules e troncos. É por isso que pensar na terra também me faz olhar os alimentos que ingerimos, pensar nas mãos que guiam a agricultura, na energia vital que une todas as coisas da terra e está presente nos alimentos.

Nas religiões de matriz africana o ajeum é a hora de comer, um rito importante para o fortalecimento físico e espiritual. Partindo da premissa de que só se come com os seus e da importância desse ato em conjunto, é onde o núcleo espiritual se torna familiar, é onde todos comem, mas comem juntos. É no ajeum onde também se aprende sobre o sagrado através da solidariedade e troca com os irmãos, onde se divide o alimento também com o plano espiritual e o que é de um é de todos.

A alimentação durante um isolamento nos faz sair do espaço que reduz as práticas alimentares a costumes mecânicos, onde não se sabe como, por quem e com qual intenção os alimentos foram escolhidos e preparados. É na oportunidade de se alimentar e interagir com a comida que reencontramos forças e conexões trazidas no prato, relembramos a importância de partilhar e não ingerimos apenas que ingerimos, ingerimos todo o contexto em que aquele alimento é envolvido antes, durante e após o seu consumo.

Um meio de ir contra a correnteza que nos puxa para a automação alimentar é compreender o movimento presente nas transformações da terra através da comida e que, assim como a relação com a comida presente nas religiões de matriz africana e nos povos originários da nossa terra, há mais sustentabilidade e sabedoria quando nossas mãos e coração se conectam ao que fará parte de nós.

Retomar a prática da comida, que nos permite reconexões e reencontros individuais e coletivos, seja com o campo espiritual, seja com nossos familiares e amigos próximos, é um modo de resistir contra as formas que tentam nos encaixar em modos automáticos, aparentemente coletivos, mas isolados em prática. Olhar novamente a importância da comida em tempos de isolamento é abrir caminhos para pensarmos nas pequenas curas que a terra nos fornece, onde tudo é transformado, em vida, morte e vida novamente, por ciclos sem fim.

É lembrar que o alimento que vem da terra passa pelo movimento dinâmico da energia vital que a tudo transmuta, que a comida passa também pelas suas próprias transformações e se convertem no novo, tendo um fundamento que nos modificará de dentro para fora. Comer o que nossas mãos preparam é também uma maneira de resistir dentro de um tempo que caminha por si mesmo, mas no qual nos conectamos constantemente a tudo.

Publicado em 6/5/20

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