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Casa de Candaces

Uma casa da cena kiki da comunidade Ballroom, que luta pela existência e protagonismo das pessoas trans. O nome Candaces é uma homenagem a uma linhagem de rainhas guerreiras africanas que formaram uma sociedade matrilinear. É formada por Zaila Candaces, Ruda Candaces, Audre Candaces, Terra Johari Candaces, Cussy Candaces, Ayur Candaces, Yaguarete Candaces.

Ballroom, transcestralidade em movimento

Casa de Candaces
por Zaila Candaces, Ruda Candaces, Audre Candaces, Terra Johari Candaces, Cussy Candaces, Ayur Candaces e Yaguarete Candaces.

“Eu, como um corpo gordo, preto, periférico, estava acostumada com a cena drag de São Paulo, que, por mais que seja uma cena grande, não é uma cena tão acolhedora, existe uma competição muito forte. E durante seis anos eu me sujeitei a muita coisa para ser aceita. Em 2018 conheci de verdade a cena Ballroom em São Paulo e me apaixonei, porque foi uma cena que de cara me acolheu muito: eu sendo um corpo gordo, uma drag queen gorda, uma travesti gorda. A cena Ballroom não tinha corpo gordo, e os corpos gordos que tinha, ou você tinha que estar numa categoria de rosto ou uma roupa que não mostrasse tanto o corpo, mas comecei a me focar mais no sex siren, que foi a categoria que me deu mais grand prizes e visibilidade dentro da cena. Acho que não só com o meu corpo, mas com a maioria dos corpos que frequentam a Ballroom, rola esse acolhimento. Não é uma cena perfeita, tem seus prós e contras, mas pra mim foi meio que um abrigo mesmo. Se eu performasse como performei na ball do Rio de Janeiro em um show de drag, eu ia ser xoxada, as pessoas iam rir de mim, iam fazer comentários, que eu não tenho que estar fazendo aquilo, que estou expondo meu corpo demais.” (Cussy Candace)

Quando falamos da Ballroom, falamos de uma tradição de protagonismo de corpes trans racializades, de corpes diversos com potencialidades igualmente diferentes. É uma história que remonta a quando Crystal LaBeija bateu de frente com o racismo dos concursos de drag em Nova York, no final da década de 1960, e inaugurou uma tradição de expressão em comunidade, de inúmeras técnicas e estéticas de dança e performance, abrindo encruzilhadas de possibilidades para corpas como as nossas. E hoje aqui no Brasil, principalmente desde 2015, podemos vivenciar tudo isso em diálogo com nossas próprias experiências, musicalidades e linguagens do corpo.

Vivemos em encruzilhadas porque nossa transcestralidade não deitou, e assim começou a travar a guerra para sair dos becos sem saída coloniais. Observando as sociedades de nosses ancestrais que não foram destruídes pelo projeto de civilização genocida e corrosivo da branquitude, milhares de culturas se atravessavam nas suas realidades diárias, vidas, concepções de ser e estar no mundo, sua relação com vida e morte, conflitos da organização social e relações com o outro. Tudo isso existia porque havia uma conexão coletiva de organização através do corpo em movimento.

Numa grande fogueira, cada pessoa tem sua função. Algumas estarão rodando e outras estarão observando de longe. Existem aquelas que continuarão fazendo a fogueira queimar enquanto outras irão preparar o alimento. Existem pessoas que serão as sábias e as que precisam desse julgamento para resolver questões. Certamente haverá pessoas vestidas com trajes ritualísticos e objetos especiais. Todas essas partes do todo são responsáveis por emitir uma autoridade energética que corre pelo ar e que entra nas respirações, e como a respiração corre por todas as células, a energia se faz presente em todas elas. Corpas que aprenderam a se organizar através do movimento. Estar numa ball é sentir essa energia palpitando, quando as performances, a música, jurades, chant e as reações da comunidade se integram num ritual percorrendo o espaço.

Pensar em como nosso movimento se organiza através da Ballroom é inegavelmente atravessar por feridas em todas as facetas das pessoas que a vivem. Fomos traficades, desumanizades, genocidades, escravizades, nosso corpo diminuído a objeto de trabalho, resumido à binaridade cisgênera, embranquecido  em tom e em mentalidade, higienizado pela noção de civilidade e impedidos aos acessos mínimos para viver, não estar vivo. Entretanto, o quilombo, mais que inegavelmente, foi fogueira, foi movimento, e essas histórias também correm nos nossos sangues e compõem essa energia, compartilhamos delas. Somos, vivemos, lembramos, contamos e as contaremos, porque elas não são contadas por registros em papéis coloniais e somente apagadas da nossa própria educação formal; mais uma vez, elas são contadas pelo movimento e no pertencimento.

A Ballroom é quilombo que está tomando suas proporções mundiais para as corpas trans racializades. A faísca existe no nosso corpo em movimento; a cada dip, lembramos mais dessas histórias que nos foram tomadas. Por isso é tão constrangedor quando tem uma pessoa branca caminhando nas categorias. Nem pretendemos falar da experiência de corpos brancos na ballroom. Mas também temos que (nos) alertar de que a branquitude está empenhada na atualização de seus processos coloniais. Não raros são os momentos que, ao falar de vogue, ouvimos a famosa pergunta, “Aquela música da Madonna?”, ou o famoso death drop, que é acompanhado do noguing. Em resumo, a comunidade xoxa, gonga, não paga o dip; achamos caricato, debochado e sem noção por não dar conta da importância do todo e das vidas que morreram para perpetuar em todes essa movimentação.

A diferença está no corre. Estamos correndo, literalmente. Por isso falar em representatividade se torna muito pouco; "o tudo pra nois é pouco". Não estamos negociando aceitação, respeito, passabilidade. Queremos “de volta tudo! que o devorador roubou!”

E quando essa fogueira estiver tão quente que começar a queimar o cistema? Quem poderá se salvar? Quem estará comprometido com a nossa restituição? Que histórias serão contadas e por quê?

A restituição significa também recuperarmos o gozo de nós mesmes, de nossas corpas. Não cabemos em classificações higienistas, exóticas e/ou romantizadas do que a branquitude cisgênera espera de nós. Não estamos aqui para saciar a sede colonial por tragédias, “selvageria” ou historinhas de superação, embora quase sempre o mercado da cultura queira compelir a isso. Nossas águas são muito mais densas e também foram intoxicadas pelos dejetos do pacto eurocêntrico e cisgênero que organiza essa sociedade. Não cabe a quem decretou sem sucesso a nossa morte esperar de nós a redenção de suas noias e anseios. Já vivemos no corre diário para lidar com essas toxinas que não produzimos.

Perguntamos o que é ter autoestima. Esse é um drama das nossas tentativas de praticar o autoamor e o amor entre nós. São processos encharcados de afetos que atravessam nossas corpas. Falar de afeto não é falar só de harmonia, é reconhecer e direcionar os fluxos das nossas raivas, irritações, tristezas e ressentimentos, já que o cistema nos interpela o tempo todo recusando nossa humanidade, nos injetando doses de seus padrões assassinos e precarizando nossas condições de vida. Quilombo também é cuidar das nossas feridas, viver bem, nutrir e ser nutride, entender nossas corpas para além da pobre lógica branca do gênero. É uma busca sem destino pelo direito de existir e estar bem na própria pele, de estar suave às vezes sabendo que sempre vai ter tretas com as quais lidar.

Se estamos nessas encruzilhadas coloniais, tentamos daí criar rotas alternativas que possibilitem nosso sustento e também nossa satisfação. Trajetos de movimentações coletivas e de movimentações corporais. Quando caminhamos em uma ball, podemos criar imagens de nós mesmes que nos façam algum sentido, em nossas muitas contradições e conflitos. Participar da performance é expressão de pertencimento a culturas ancestrais, e na pista registramos nossas histórias. Atualizamos o compromisso de não morrer e de perpetuarmos nossas fontes de vida.

Quero estar junte,
semeando a boa aventurança,
descansar mas não fechar os olhos,
viver em segurança.

Esse modo ocidental
não foi feito pra gente como a gente
estar em comunidade
é viver diferente.

Por isso estar consciente de
que comunidade faz parte
do trajeto da vida
e que trajeto nenhum sem comunidade vale a pena.

Autogestão é matriarcal.
Nutrir e ser nutrides
como árvores milenares e frutíferas
Nascentes que nunca morrem.

Clique nas imagens para ampliá-las
Voguenic. Foto de Cintia Rizoli
Zaila Candace. Porn ball. Foto de Cintia Rizoli.
Zaila Candace. Kiki Ball Remember My Name. Foto de Cintia Rizoli.
Mother Zaila. BH Vogue Fever. Foto de Cintia Rizoli.
Terra Candace. Afrodiaspórica. Foto de Cintia Rizoli.
Ruda Candace. Tropicália Kiki Ball. Foto de Cintia Rizoli.
Terra Candace. Afrodiaspórica. Foto de Cintia Rizoli.
Ruda Candace e Yamakasi Black Velvet. Tropicália. Foto de Cintia Rizoli.
Yaguarete Candace. Afrodiaspórica. Foto de Cintia Rizoli.
Cussy Candace. Revlon Ball. Foto de Cintia Rizoli.
Transmasculinos. Afrodiaspórica. Foto de Cintia Rizoli.

Publicado em 26/11/20

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