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Conversas Críticas sobre curadoria

Ana Lira, Projeto Afro/Deri Andrade e Flávia Couto

Ana Lira é artista visual, fotógrafa, curadora, radio host, escritora e editora baseada em Recife (PE). É especialista em teoria e crítica de cultura. Observa a (in)visibilidade como forma de poder e dedica atenção a dinâmicas envolvendo sensibilidades cotidianas. Sua prática é baseada em processos coletivos e parcerias, tendo trabalhado com eles por mais de duas décadas.

Flávia Couto é brasileira, 36 anos, indígena da etnia Maracás (BA), é artista do corpo, crítica e curadora de dança. Como crítica, escreveu para o jornal Folha de S.Paulo (2011 a 2014). Desde 2016, lidera a TransaKrytica, rede de ações/intervenções/mediações em festivais, encontros, residências artísticas e demais espaços de arte e educação.

Ana Lira

[quando o vento desloca em chamados

oceanos espraiam suas fronteiras]

O meu corpo não foi meu nos últimos anos.

Ele foi dos processos
das intensidades

do que materializei quando assentava os resultados das ventanias

redemoinhos
danças e vidas

e das mortes que me enviaram sem que eu pedisse | quisesse.

O meu corpo não foi meu em plenitude...
ou foi
porque plenitude é um estado de presença -

e sinto que foi ela quem acionou as forças
os lugares
as permissões

Vejam bem.
Estamos em novembro de 2020
e recebo este convite para escrever uma observação crítica sobre o IMS Convida.

Olhei para o meu corpo atravessado de marés altas

e me perguntei como encaminhar um gesto que respeitasse o meu momento de reconexão com as sensibilidades cotidianas
e a confiança do convite...
discutindo relações de poder

– uma questão tão simbólica para mim,

que atravessou a minha produção
como artista, curadora, articuladora...
pessoa existente nesse mundo –

e conversar sobre estas relações no âmbito da amplitude do programa.

Fechei os olhos e senti que isso poderia envolver muitas possibilidades:

curadoria
relações
obras
criação
redes
financiamentos
territorialidades
geopolíticas

; pensei, até, se me debruçaria em palavras escritas

ou faria um programa de rádio para esta conversa.

Mas, era um convite-texto...
então, vamos seguir as curvas de vento das escrituras.

Curadoria pode ser – entre outras coisas –

uma vastidão de intenções.

Deixo este espaço vazio para que trafeguemos entre as coisas possíveis...

liberemos nem que seja para si mesmes outras formas de_

entrega curatorial.

E digo isso porque a curadoria do IMS Convida me deixou contente,

mas inquieta.

Ela recebe muitas sensibilidades cotidianas
acolhe práticas artísticas amplas, dentro do possível pandêmico

– ainda que a institucionalidade deixe claro
(para os investidores? Circuitos das artes? Quem?)
que as obras não representam a opinião da instituição
(este capítulo nós conhecemos) – mas...

manteve mais de cinquenta por cento dos recursos

de suas três etapas

em projetos de artistes baseados no sudeste

| entre residentes fixos e em trânsito-covid |

Olhando com mais cautela as listas de artistes
e seus embrenhamentos intra-plataforma
| porque isso é importante |

meu corpo nota que muitos estados do norte/nordeste

sul/centro-oeste
continuam espectros
na geolocalização dos financiamentos. Mesmo na pandemia.

Fiquei me perguntando: como se constrói a curadoria do IMS Convida, na prática?

Por que ela não consegue chegar com profundidade em Tocantins

Roraima.              Espírito Santo
Rondônia
Amazonas                                  Acre
Amapá
Alagoas.
Rio Grande do Norte                    Sergipe
Piauí
Paraíba
Mato Grosso
Mato Grosso do Sul
Goiás
Paraná
Santa Catarina

?
Estou falando de estados que meu contar
- entre listas e embrenhamentos -
não conseguiu identificar mais de 5 nomes envolvidos.

É a pandemia.
Não, gente!
Há internet [ainda que básica] em todos os estados.
Que esforços podem ser feitos para que esta produção chegue?

Estados, como Tocantins,
[se meu contar não se perdeu]
não apareceu com nenhum nome.

Até eu – que apenas senti vestígios do cheiro do Tocantins
pelos relatos dos povos Kalunga, em Goiás –
sei que tem uma produção potente naquele lugar.
Então, meu povo, ampliem a direção dos apoios.

E, digo isso, entre a vontade de ver o Tocantins bombando
– e toda aquela lista ali citada;
incluindo os estados-meio-de-caminho
[como o meu, Pernambuco] –
e o medo das práticas coloniais da arte

que mantêm as produções de certos estados do Brasil
como time de base de campeonato de futebol

                                  (aquele que é lembrado na biografia do craque,
quando este segue à risca a jornada do herói
mas nunca
nunca recebeu o incentivo devido).

A pandemia deveria nos levar a lugares outros,
assim sinto.
E desmontar a jornada do herói
do mito

deveria ser a principal delas.
[porque transformação coletiva é
sobre isso também].

Quero dizer, todavia,
que as produções – até então apoiadas –
continuem sendo apoiadas. Sim!!!
Estou em estado de amor por diversas delas

Dijuena Tikuna
Lumena Aleluia
Ana Pi
Panteras Negras

minha lista de desejos é intensa
como as marés que me moveram

olhem, colegues
olhem!
os versos                   das obras
de Amanda Falcão
contra-narrativa é isso
[que histórias dos vencidos, que nada...]
Por sinal
Por sinal

vencidos – minorias

são palavras que deveríamos nos despedir.
Elas não nos permitem um caminho-potência.

leio [escuto] lembro

daquele instrumento de tortura
perdido no meio do canavial
ou do cafezal
ou do pantanal
ou dos pampas
ou da Amazônia

sem pororoca.

E uma trafegada em estado de entrega
pela produção racializada na plataforma
nos mostra que podemos ter pouco financiamento

mas não a preguiça-cômoda

da obra-qualquercoisa-pandemia

Ainda somos corpos-macaréu
apesar dos modelos (in)sustentáveis
espalhados pelo Brasil

o que não significa mantê-los.

Vou repetir:

apesar da nossa produção in/tensa

não devemos manter

os modelos

(in)sustentáveis

espalhados pelo

Brasil

Para entender o que estou escrevendo
descrevendo
insistindo

debruce atenção cautelosa
sobre cenários
temas
práticas
estruturas
apresentadas pelas listas de artistes na própria plataforma

As assimetrias
| há quem chame de diversidade |
estão todas apontadas de A-Z

O espaço de pesquisa

e deleite [que eu me dei o direito de viver, é claro]

é, também, é também, atalaia
lugar de observação-redesenho
de uma política pública de cultura

que nos respeite.

E ouso falar em política pública de cultura
porque o incentivo privado à cultura, no Brasil,
na verdade, é público.

Em boa parte...
via leis de incentivo, isenção fiscal e seus afins.

E somos privados
do que é privado-nosso.

Olho para a produção que ainda
nem aportou neste espaço-quarentena

e em outros em andamento pelo país
e sinto que a pandemia

ainda nos oferece tempo de [re]compartilhar poderes
e nos assentar
em terras de segurança criativa
e dignidade financeira

na perspectiva do respeito à integridade
e não da caridade

 

(que sempre nivela por baixo –
e pelo entendimento de quem oferece
– as necessidades de quem recebe).
E isso, meu bem, eu dispenso.

Projeto Afro

Muitas foram as iniciativas artísticas e culturais não hegemônicas surgidas à luz da pandemia no Brasil. O próprio programa Convida, do Instituto Moreira Salles, é neste caso guarida de inspiradoras criações que na incerteza do tempo presente, rascunham futuros palpáveis... ou mesmo utópicos, mas que alimentam. Criado em junho de 2020, por Deri Andrade, jornalista alagoano radicado em São Paulo, o ambicioso Projeto Afro, “plataforma afro-brasileira de mapeamento e difusão de artistas negros/as/es”, fruto de uma pesquisa que compreende mais de três anos (e segue em curso), é uma das bem-vindas criações nascidas neste nebuloso período que vivemos.

Em conversa com o também jornalista Nabor Jr., Deri fala sobre o Projeto Afro. Compõem ainda o painel reflexivo desenhado por ele a crítica, a curadoria, o mercado, a produção artística afro-brasileira contemporânea e seus desafios. O que há de concreto e de vulnerável nesta década de incomum interesse institucional e de rara visibilidade para artistas negros/as/es do país? Com a palavra, Deri Andrade.

Ficha técnica
Entrevistador: Nabor Jr.
Vídeo e edição: Danilo Pêra
Fotografias: Wagner Celestino e MANDELACREW
Música: Miyagi Beats – Jazz Maclass (Volume 01)

Flávia Couto

 

Curare na ponta da flecha curatorial
Para se conceber curadorias de dança não hegemônicas

Desde os anos 1990 a curadoria de dança no Brasil se desenvolve como um campo de organização, orientação e agenciamento de dança a partir de entendimentos de corpo e arte brancos. Isso se deu por anos em um processo colonialista de transplantação de modelos eurocêntricos de curadoria aplicados à dança contemporânea, em que métodos curatoriais europeus se tornaram bases estéticas e políticas de festivais de dança brasileiros, negligenciando os saberes epistemológicos indígenas e afro-diaspóricos que sempre existiram aqui.

Um exemplo emblemático de transplante curatorial foi o que aconteceu na Bienal de Dança de Lyon (França), que, em 1996, apresentou o tema “Aquarela do Brasil” – um dos acontecimentos centrais na política de transplante de métodos curatoriais. Naquela ocasião, o diretor francês Guy Darmet reuniu, em uma mesma curadoria, diversos artistas e companhias distintas do Brasil, homogeneizando tudo no leque da diversidade do que o europeu considerava, então, a “dança brasileira”. 

Essa proposta curatorial “verde e amarela” da Bienal de Dança de Lyon atuou como uma política pública francesa e, em contrapartida, esteve em parceria com o V Panorama da Dança Contemporânea (atual Festival Panorama de Dança) do Rio de Janeiro, onde o próprio Guy Darmet fez a palestra de abertura do festival, selando o acordo de troca de programações no eixo Brasil-França.

Cito brevemente esse evento para denunciar que a suposta política de troca, ao chegar ao nosso território colonizado, não se deu de forma horizontal e equivalente. Pois, à medida que curadores brasileiros foram assimilando o modus operandi europeu, foram também se alinhando às estéticas supremacistas e higienistas, orientadas pelo status quo da branquitude. Isso determinou escolhas de configurações de dança que se encaixaram no que veio a se tornar a rede hegemônica curatorial de dança contemporânea brasileira. 

Podemos ver, ao longo desse processo, o então crescimento de festivais e bienais de dança em estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Ceará, Minas Gerais e Bahia. Nesse contexto, as programações dos festivais começam a funcionar como uma espécie de consórcio, em que os mesmos artistas da dança que se apresentam em um festival no Rio ou São Paulo (centros de distribuição de modelos hegemônicos) também circulam por todos os outros Estados do país, delimitando, assim, uma rede fechada de consumo da dança pouco conectada com os fazeres artísticos indígenas e afro-diaspóricos locais – os quais, muitas vezes, só aparecem nas programações sob o guarda-chuva da representatividade folclorizada.

Na contramão disso, existem atualmente inúmeros debates arte-educacionais de autoria indígena e negra que têm como objetivo pensar estratégias antirracistas alinhadas ao combate do epistemicídio dos saberes indígenas e negros. E, junto com esse movimento, é imprescindível desenvolvermos procedimentos curatoriais decoloniais.

Acredito que uma das formas viáveis de atingir isso é conceber curadorias de dança não hegemônicas apoiadas em saberes ancestrais. A partir dessa retomada é possível construir mecanismos de combate ao epistemicídio afro-indígena e realocar aquilo que foi periferizado ou invisibilizado em relação ao centro supremacista. 

Faço uma analogia a uma ação que opera como curare indígena: a elaboração de um veneno extraído das plantas aplicado na ponta das flechas usadas para caçar. O efeito paralisante que o veneno do curare tem no corpo da caça é, aqui, o efeito desejado ao sistema hegemônico colonialista de gestão da dança contemporânea.

O curare na ponta da flecha curatorial, além de ser uma operação de caça que injeta veneno de ação inibidora nas lideranças impostas, é também uma operação de exorcismo do capital, possibilitando que a atividade curatorial esteja em consonância com a dignidade financeira necessária atribuída e redistribuída ao exercício simbólico do trabalho indígena e negro.

Agência de cura
A curadoria de dança como um espaço de cura

Convencionou-se que a figura do curador é aquela dotada de saberes intelectuais, na maioria das vezes, também, de formação acadêmica. Isso o habilitaria para nomear, separar, classificar e escolher obras de arte em uma mesma concepção ou arranjo curatorial.

No entanto, a intelectualidade não se diferencia das demais múltiplas inteligências nas perspectivas indígenas e negras, dado que todos os seres viventes são dotados de saberes que atravessam gerações em conjunção com noções expandidas de espiritualidade, em que corpo e natureza coevoluem como parte do mesmo universo.

Considerando que o cerne de uma construção democrática seja dar, a quem não tem o poder de decisão, o direito de decidir, assim como dar, a quem não tem a legitimação da fala dentro do sistema hegemônico operante, o poder da fala, é preciso pensar, então, em uma curadoria que convoque vozes, as quais sejam autoridades oriundas de suas inteligências experienciais, e que, de forma transversal, articule arranjos artístico-curatoriais mais democráticos a partir de pensamentos indígenas e negros.

Nessa encruzilhada específica de retomada dos saberes indígenas e afro-diaspóricos para estruturar o trabalho curatorial em dança, a curadoria se torna um lugar de práticas de cura, onde a realidade trágica de etnocídio e racismo estrutural – compulsórios aos povos originários e negros – se transforma em realidade mágica, orientada por cosmovisões indígenas e ebós epistemológicos.

A mesma flecha que transporta o curare paralisante do sistema colonialista é a flecha que aponta para um futuro no qual a curadoria de dança é uma agência de cura alimentadora de modelos não hegemônicos. Nessa paisagem, o curador transfigura-se, portanto, em curandeiro das artes do corpo, para que, dessa forma, a feitura curatorial se expanda e se abra a processos de não linearidade hierárquica, aliando-se ao contexto sociopolítico onde é produzida.

O curador de dança não pode mais ser uma figura centralizadora de poderes intelectuais, ele deve se tornar um estado de inteligência provisório, ocupado alternadamente por agentes curandeiros que sabem fazer o que se precisa fazer na incessante luta contracolonial e antirracista.

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Performance Mandinga-Batalha-Mandinga/TransaKrytica.

 

 

Performance Mandinga-Batalha-Mandinga/TransaKrytica.
Performance Mandinga-Batalha-Mandinga/TransaKrytica.

Ficha técnica
Texto: Flávia Couto
Fotógrafo: Cayque Santana
Concepção: Flávia Couto
Produção Musical: Raiany Sinara
Salvador, 2020.

Publicado em 26/11/20

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Projeto realizado a convite da área de Educação e acompanhado por Renata Bittencourt, da equipe do IMS

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