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Tieta Macau

Artista transdisciplinar, filha da serpente, criadora de macumbarias cênicas e outras espirais, e interessada em processos afrorreferenciados de criação e produção cênicas, poéticas populares e afrodiaspóricas, escritas em dança. Uma das criadoras do Coletivo DiBando, atua em colaboração com vários artistas e grupos entre o Maranhão e o Ceará.

Ao umbigo da terra, um gesto para desacreditar

Resolvi escrever como um exercício de não me perder, ou mesmo de alguma vez tentar tramar uma narrativa linear, como exercício de ironia… Confesso que intimamente desconfio que o linear não se dará, e que essa escrita será mais uma vez cacheada e emaranhada como os fios dos meus cabelos e do meu pensamento.

Para os tempos de agora, não consigo gerar um gesto sem pensar no velho.

O velho é quem tem uma das danças mais bonitas. Ele aprendeu com o tempo, observando por baixo da palha. Por isso a Oyá ventou no seu corpo pipocas, para vê-lo dançar alegrias.

Logo no comecinho do adoecimento coletivo eu gravei um vídeo contando um Itan do velho. Aquele que narra como, na partilha de poderes, ele recebeu a peste. A mesma que acometeu o mundo de uma mortandade, e que levou as pessoas a oferecerem preces e oferendas a todas as deusas e deuses. Mas a humanidade só conseguiu a cura quando lembraram do velho e o saudaram… o senhor da peste e o senhor das mandingas.

A cura não é imediata… sedações, são.

Imediato é fast food, sabe o que mais? Fast food não estraga, não deixa a vida passar, nem mosca pousa. É como um defunto que não fede.
Que coisa! No asé o que cria larvas, fungos, é também o que tem vida, o que vira húmus para fazer semente brotar.

Eu tive uma velha que se foi. Uma velha templo lá do quilombo de Tubarão. Ela estava na ilha. Eu na cidade do sol.

A velha partilhava do mesmo povo que eu. Ela foi e eu senti que eles vieram. A partida dela fez dançar minha coluna e uma das vértebras fez trazer de volta ao coração os tempos do eu criança com as velhas, as duas que foram… a que foi antes e a que foi por agora. É bom olhar pro meus pés, que envelhecidos antes da hora me fazem lembrar dos delas. Vai ver ando dançando igual… fazendo de seus rastros minhas pegadas.

Acho até que a peste chegou porque a gente desaprendeu a plantar os nossos pés nas pegadas.

Por isso ando agora no processo de fazer o movimento inverso, reverso em direção ao umbigo.

Ao umbigo de mim
Umbigo da terra
Umbigo dos saberes que me compõem
Uma espécie de vontade de vomitar tudo o que a empresa colonial me fez engolir.

Só penso que quero parar de acreditar. Acho até que devíamos fazer um grande movimento coletivo em retorno aos nossos umbigos, não os dos egos isolados, mas os umbigos raízes. Voltar à terra e coletivamente desacreditar!

Comunidades violentadas Campo Grande Minas, Cajueiro, Alcântara, Macaco, Canudos, Palmares, Guajajara, Tupiniquim, Marubo, Yanomamis, Krateus, Kaiapós, Krikatis, Liberdade, Santa Rosa, Bom Jardim, mais uma, mais uma, mais uma, fogo, bala, fogo… Sem terra… mas a terra sempre será nossa, e não deles…

A gente precisa desacreditar.

A grande empresa não merece ser chamada nem de URUBU, o Urubu tem uma função cosmológica. A empresa... ela é a própria invenção de podridão.

Um corpo coberto por guarda-sóis, assim dizia a manchete, e as vendas continuaram. A empresa fede.

A gente precisa desacreditar.
A gente precisa desacreditar.
Para então desestabilizar e fazer ruir.

Questões da performance? Da dança? EU não sei! Quem dera poder acreditar que tais palavras nos cabem!

Não sei mais nem se ARTE ainda é uma questão. Prefiro mesmo voltar ao umbigo e desacreditar, desacreditar das galerias, dos festivais, dos circuitos da ARTE, da ARTE, da ARTE.

O galo cantou no romper da aurora, todo mundo entrou e eu fiquei de fora!

Toda e qualquer estrutura que não reconhece as redes de Seu Davi, os Rastos de Seu Joca ou os cantos da minha preta Roxa, todavia aprendeu bem a reconhecer o belo e a confirmar o científico por meio de estesias eurocontroladas, me aparenta um pouco de fedor.

A cada vez que me volto a pensar nos meus velhos percebo as extensas aberturas entre passados, presentes e futuros… O contemporâneo que se forma. Ancestral é transtemporal! Fundação do entendimento da diferença, não há ancestralidade sem alteridade… Quem sabe da ancestralidade já entende de rizoma há tanto tempo que nem o corpo que não tem órgãos conseguiu acompanhar.

Não há caminhos sem espirais.

Não há criação sem encruza.

Por isso é preciso desacreditar.

Para entender paradigmas.

Para reaprender os feitiços, o sopro e a saliva.

Fazer um esforço coletivo para parar de sustentar esse imaginário da grande empresa.

Destruir todo o imaginário da empresa!

Aniquilar os sonhos pequeno-burgueses do capital!

Mandingar, pungar, gingar, dar rasteira sim! A gente joga com malandragem. Mas acreditar, a gente precisa parar de acreditar! Para reaprender os feitiços, o sopro e a saliva.

É bom estar na minha terra, me faz pensar melhor como se pisa.

Por aqui a gente faz pisadinho que mexe o quadril pra dançar o boi, o tambor, o cacuriá…

eu sou eu sou eu sou eu sou eu sou jacaré poiô!

Pisar direito e repetir muitas vezes que sou esse jacaré, pra ver se incorporo em minhas entranhas a força desse gigantesco bicho que com uma rabada mata! Já pensou poder mexer minha raba com tamanha força e aniquilar muitos acéfalos empregados da grande empresa?

Às vezes, acho, eles deveriam de fato sumir. Contudo, lembro bem do Krenak falando que a resistência de muitos povos não se faz em desejo de sangue alheio… mas no silêncio das folhas e das terras.

Meu povo aqui do chão que piso agora há muito resiste em festas. Nossas danças convidam nossos mais velhos à gira. Nossas festas são bibliotecas abertas, epistemologias completas. Lugar de aprender resistência e aprender esqueletos para nossas criações.

Questões da performance, da dança, da arte…

Já não posso mais dançar, como d’antes já dancei, de dançar na terra alheia, até meu dançar mudei.

Fiquei me perguntando um tempo sobre essas questões. Talvez por ter voltado a pisar no meu chão, passei a achar com muita força que deveria começar o grande movimento de desacreditar. Já fazia um tempo que isso ocupava os cacheados dos pensamentos, mas nada como nos últimos dias.

Teve uma parenta que bateu aqui nos cacheados, bem na hora do desespero. Na hora em que parecia que não ia dar conta de obedecer às regras polidas da empresa… a parenta bateu e me lembrou do nosso grande trabalho:

Ser maior que o nosso trauma! E por conseguinte ser maior que o mundo! Esse é o nosso contratrabalho!

São falas da parenta Jota.

Eu li por três dias seguidos, como um respiro bem na hora em que a pane parecia que ia acontecer. Essa porra toda faz de fato a gente explodir um pouco, quando estamos no exercício de tentar destruí-la… a gente é mesmo bicha bomba parenta!

Na hora da quase pane, lembrar que enfrentamos juntes o trauma me levou a uma contrapane, a parenta me salvou! E sabe o que mais… nesses dias fui visitando outros parentes…

O Elton Panamby, meu irmão, Well Gadelha, Ò Wiil, meu querido artista periférico, a Deborah Santos, o Viana Jr, o Gerson Moreno, a Jack Elesbão, o Luiz de Abreu, a Luzia Amélia, a Ana Pi, a Tina Melo, o Rúbens Lopes, Luciane Silva, a Onisajé, o Ruan Paz, a Eliara Jaci, Ana Musidora, o Dinho Araújo, a Gê Viana, o Renato Guterres, a Silvana Mendes, a Márcia de Aquino, a Ju Rizzo, a Ariel, a Levi, a Isadora Ravena, a Mumutante, a Lucimélia Romão, a Pretinhe da Silva, a Noá, Amandyra, Vic Andrade, a Camila e a Rosa Reis, Dona Teté, Seu Abel, Seu Joca, Seu Apolônio, Seu Davi, Nadir, Mestre Gonçalo, Dona Mundica Paca, Seu Felipe de Sibá, Pai Airton, Mãe Aíla, Minha mãe, minhas mães, minhas avós…

Um monte de parente… vieram todes aqui me acompanhar nos dias de quase pane, e sabe aquela pergunta que a Jota se faz sobre quais as estruturas que se antecipam quando um corpo negro despenca? Se são as de amparo ou as de descarte? A grande empresa pode até estar correntemente tentando o seu trabalho de atualizar os nossos traumas…

Mas deixo bem dito que:

São sete encruzas, sete rezas, sete espadas, sete santos, sete encantos, sete velas, sete folhas, sete ventos, sete saias, tudo isso vezes sete, antes que qualquer mal me alcance! Antes que qualquer mal nos vença!

Eu tenho uma renca de parente me amparando, de algum modo a gente se ampara junte.
E o senhor do tempo é um velho e ele caminha sem pressa com suas danças de cura…
Que possa eu aprender a andar e dançar como o velho e fazer de seus rastros minha pegada.

 

Trilha:
Jabuti e Jacaré, cacuriá de Dona Teté, domínio popular

O cantar do Galo, cacuriá de Dona Teté, domínio popular

Desvio padrão - conexão 2018. Foto de Dinho Araújo.
Ancés, Tieta Macau. Foto de Lissa Cavalcante.

Publicado em 26/11/20

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