POR Nani Rubin
Autora do best-seller Quarto de despejo (1960) e de vários outros livros, além de poeta e compositora, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) tem sua obra e sua trajetória celebradas no dia de seu nascimento. Ao longo do domingo 14/3, o Instagram do IMS será ocupado com depoimentos gravados por dez escritores e escritoras negros. Serão pequenos vídeos que trazem leituras de trechos de seus livros, seguidos ou não de comentários sobre eles, ou ainda um depoimento pessoal sobre a importância da autora e sua influência na produção literária dos que a homenageiam. Haverá ainda algumas atividades interativas na plataforma, como um quiz.
Carolina Maria de Jesus, presente faz, no título do evento, alusão à data festiva – o presente que é celebrar o seu aniversário – e à presença dela no universo literário-intelectual brasileiro, 61 anos depois da publicação do livro que contava seu cotidiano na favela do Canindé, em São Paulo. O livro fez sucesso imediato no Brasil e no exterior – traduzido para 13 línguas, foi distribuído em mais de 40 países. Não à toa, é a obra mais lembrada na Ocupação. Vários participantes, como Mel Duarte, Cuti, Carmen Faustino, Fernanda Bastos e Jeferson Tenório, escolheram ler, e alguns também comentar, diferentes trechos da publicação.
Mas vão além. Autor do elogiado romance O avesso da pele (2020), Jeferson Tenório, que também é professor, conta a experiência de trabalhar Carolina em sala de aula, com alunos do Ensino Médio de uma escola privada em Porto Alegre. Edimilson de Almeida Pereira, que além de poeta também é professor de literatura na Universidade Federal de Juiz de Fora, faz um depoimento crítico voltado para questões literárias e lê um poema de sua autoria, A mão de Carolina, em homenagem à autora.
O romancista e poeta paulistano Ferréz, autor de, entre outros, Capão pecado (2000), faz um comentário emocionado sobre veia literária de Carolina, que, afirma, deve ser considerada para além de um enfoque sociológico. O impacto de Carolina na literatura também é lembrado pela escritora carioca Eliana Alves Cruz, autora de Água de barrela (2016) e O crime do Cais do Valongo (2018).
A gaúcha Fernanda Bastos, jornalista, poeta e editora, comenta como o racismo opera no mercado editorial. Lê ainda um poema de sua autoria, Doutor, inspirado na autora homenageada. Poeta e escritor, Sergio Vaz, fundador, em São Paulo, da Cooperifa (Cooperativa Cultural da Periferia), fala sobre a descoberta e influência da autora de Quarto de despejo com um agradecimento contundente à homenageada: "Carolina salvou a minha vida".
O agradecimento a Carolina perpassa a grande maioria dos depoimentos e falas. De Oswaldo de Camargo, poeta, escritor, crítico e historiador da literatura, que, como ela, também rompeu paradigmas – é filho de trabalhadores da lavoura do café em Bragança Paulista – tendo conhecido a autora em encontros da militância negra nos anos 1960, a Mel Duarte, jovem poeta e slammer paulistana.
"Carolina continua mais viva do que nunca", considera a historiadora Raquel Barreto. "Acabou se ser agraciada com o título de doutor honoris causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, será tema de exposição no IMS e de outros projetos importantíssimos, sua obra completa será editada."
Raquel e o antropólogo Hélio Menezes são os curadores da exposição Carolina Maria de Jesus – Um Brasil para os brasileiros, que será inaugurada este ano no IMS Paulista (a previsão inicial, 12/6, pode ser modificada devido à pandemia de Covid-19). Ao longo da pesquisa de levantamento de material para a mostra, eles puderam identificar, de forma bem precisa, o seu papel no cenário literário do Brasil. Para Hélio, mais do que uma escritora, Carolina é uma escritora-intérprete do país:
"Ela mira o país a partir de uma experiência de mulher negra empobrecida, imigrante, trabalhadora, mãe solo de três filhos, uma série de marcadores sociais que a habilitam a olhar o Brasil a partir da inteligência que lhe foi distinguida, e de um ponto de vista ainda não presente na literatura nacional. Carolina inaugura uma literatura que não apenas mira para a pobreza; é o próprio pobre falando de si".
Para o curador, ela promove "uma cisão na literatura brasileira, até então, como até hoje, muito marcadamente dominada por autores homens brancos, e por autores homens brancos herdeiros, oriundos das altas classes", diz.
"Não parece à toa que aquela mulher, cujo avô era um negro escravizado e a mãe, como ela mesma dizia, uma filha do Ventre Livre, passada a euforia com o sucesso de Quarto de despejo, tenha caído num quase esquecimento pelos meios literários, mantendo-se, no entanto, como um símbolo nas lutas negras e populares."
Para Raquel, "é sempre bom enfatizar que Carolina era uma escritora consciente de seu projeto estético-literário". Ela observa que existe uma tendência a se reduzir a complexidade da criação literária de escritores que não são cânones – "especialmente quando não se trata de pessoas brancas escrevendo, tende-se a considerar que tudo é vivência e não criação literária". Carolina derruba essa visão. "Há uma autoconsciência literária. Há uma pluralidade na autora na passagem por gêneros literários, por exemplo, a poesia dela é mais tradicional enquanto a narrativa é muito mais disruptiva, trazendo o uso do idioma vivo, em movimento."
É a língua viva, e muito presente, de Carolina Maria de Jesus que se celebra em seu aniversário.
Depoimentos publicados no Instagram do IMS durante a ocupação do dia 14 de março de 2021 em comemoração ao aniversário de Carolina Maria de Jesus.
Eliana Alves Cruz e Cristiane Sobral
Jeferson Tenório
Cuti e Fernanda Bastos
Cidinha Silva
Edimilson de Almeida Pereira
Geni Guimarães
Carlos de Assumpção
Mel Duarte
Sérgio Vaz
Fernanda Bastos e Carmen Faustino
Jeferson Tenório e Carmen Faustino
Miriam Alves
Oswaldo Camargo e Carlos de Assumpção
Negafya
Edimilson de Almeida Pereira
Ferréz
Quando
14 de março de 2021
Publicações ao longo do dia no perfil de Instagram do IMS.
Autora que estreou com retumbante sucesso editorial, Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento (MG), em 14 de março de 1914. Do pouco que se conhece sobre sua infância, sabe-se que estudou no Colégio Allan Kardec, do Grupo Espírita Esperança e Caridade, na sua cidade natal. Depois de peregrinar com a mãe em busca de trabalho pelas cidades do interior paulista, Carolina chegou à capital do estado em 1947 e se instalou na favela do Canindé, de onde saía diariamente para trabalhar como catadora de papel.
Foto: Carolina Maria de Jesus, 18 de novembro de 1960. Acervo UH/Folhapress