As palavras pertencem metade a quem fala e metade a quem as ouve.
Michel de Montaigne
O vampiro Nelsinho vaga por uma Curitiba modorrenta, lotada de pecados e aventuras. Prostitutas, bosques, orelhas, frutas e o frio são tão personagens quanto o próprio vampiro. Tudo isso espalhado em 15 contos de linguagem concisa e indiscreta, carregada de sarcasmo e ironia. Com esse banquete de O vampiro de Curitiba (1965), Dalton Trevisan fez fama e adquiriu o apelido que carregou para toda vida.
Em 2025 a comemoração é tripla: os 60 anos deste clássico, o centenário do nascimento do autor e a chegada de seu arquivo pessoal, doado em 2024, ao Instituto Moreira Salles. Dalton, porém, não estreou no IMS com esse conjunto valioso. Em 2020, primeiro ano de pandemia, o próprio autor doou um lote extenso de quase 600 cartas, trocadas sobretudo com o amigo e também titular de acervo Otto Lara Resende. Há também outras, para os escritores Fernando Sabino e Pedro Nava, e do cronista Carlinhos Oliveira. O conjunto mostra duas faces da construção literária de Dalton: a obsessão pela busca da medida correta na escrita e a leitura ávida de (quase) tudo que lhe caía nas mãos.

A epistolografia é sempre uma delícia para amantes de boas histórias ocultas e para a reconstrução da persona escondida por trás da obra, ainda mais se tratando de Trevisan, de personalidade fugidia. Encontrar o autor falante é quase uma invasão consentida em uma intimidade tão bem preservada por cerca de 80 anos. No conjunto de cartas se destacam também as paixões literárias, o rigor metódico e a profunda amizade que nutria pelos correspondentes, além de uma ou outra fofoca de Curitiba.
As cartas abrangem um período enorme da também enorme vida de Dalton. As trocas com Otto Lara Resende começam em 14 de fevereiro de 1956, com uma leitura crítica dos contos que viriam a compor Boca do Inferno, segundo livro de contos do mineiro, lançado no ano seguinte. Comentários estilísticos mostram um Dalton sempre atento à economia substancial do texto. Em expressões como “exagero evidente”, “você explica demais” e “complemento desnecessário”, o curitibano lembra contemporâneos como João Gilberto e João Cabral de Melo Neto, em cujas obras a busca pela simplicidade do canto ou do verso não se deixa confundir com simplificação.
Apesar de renegar as duas primeiras obras, Dalton já havia estreado no sistema literário nos anos 1940, quando editava com um grupo de amigos a revista Joaquim, em que foram publicados contos, ensaios e poemas fundamentais para a literatura brasileira.
A polêmica sobre o enigma Capitu
A troca de cartas com Otto, possível de ser acompanhada quase ano a ano, se encerra com a morte do último em 1992. O mineiro escrevia para a Folha de S. Paulo a essa altura, quando intermediou a publicação de um artigo polêmico de Dalton no mesmo ano. Depois de uma crônica de Otto sobre a “grande polêmica da literatura brasileira”, o Vampiro, outro grande defensor da tese da traição de Capitu, ficou entusiasmado, e escreveu para Otto: “Pô, que país é este? Que críticos são esses?... Esses são os nossos críticos mais lúcidos? Então que palhaço eu sou? Alvo de espanto, assobio, horror. Agora te pergunto: publico ou não Capitu sem enigma?” A raiva se voltava aos críticos machadianos que não viam a infidelidade de Capitu como traço marcante e fundamental para se compreender Dom Casmurro. A carta foi encerrada com a fórmula inventada nos anos 1970 para se despedir do amigo: “Pia, Otto”. Uma dessas cartas foi publicada no Correio IMS.
E, meses antes de morrer, Otto “piou” pela última vez em uma carta burocrática, comentando um cheque em duplicata que a Folha havia mandado por engano como pagamento pelo artigo do curitibano.
A amizade durou até a morte de Otto e as polêmicas machadianas de Dalton, ensejadas pelo amigo e compartilhadas pelos colegas de geração, foram publicadas em 2003 na coletânea Capitu sou eu. Os bastidores, porém, são encontrados nas cartas que continham o pedido fundamental de Dalton: “Otto, seja cruel”.






Conversas (sempre) exemplares
Outros três correspondentes fazem parte desse conjunto. Um deles é o cronista Carlinhos Oliveira. Tudo indica que o Vampiro enviou alguns rascunhos de contos para avaliação de Oliveira, que se revela incapaz da tarefa e diz: “voltei ao célebre abismo… Tudo se resume em transportar uma pedra para o alto de um monte. Trabalho terminado, a pedra rola”. São duas cartas sôfregas. As cartas escritas por Oliveira contêm comentários políticos: o ano é 1956, logo depois da conturbada eleição de 1955, que Juscelino Kubitschek vencera apesar das tentativas de golpe. Além de inúmeros comentários literários, como sobre o best-seller do ano, O encontro marcado: “O livro de Fernando [Sabino] é sério, bem escrito, algumas vezes excepcional”. Tudo misturado a referências literárias e angústias existenciais.
Outro correspondente é Pedro Nava, que em 1976 lançava o conjunto de memórias Chão de ferro. Em carta a ele, um Dalton entusiasmado não poupa elogios ao terceiro livro do mineiro: “as suas memórias não estão entre as melhores da língua portuguesa — elas são simplesmente as melhores”. O sucesso da narrativa memorialística de Nava corria pela cena literária, e Dalton não ficaria de fora da festa.
Fernando Sabino completa o conjunto. São cinco cartas, datadas de 1956, 1957 e 1962. Na primeira, de 19 de dezembro de 1956, Dalton mais uma vez se mostra comovido como leitor, comentando O encontro marcado, que marcou geração. Um acontecimento literário, que Dalton assim saúda: “seu livro prende, arrasta e engole o leitor”. O curitibano foi tragado pelas aventuras mineiras de Eduardo Marciano e sua turma, e celebra tanto o encadeamento da trama quanto a forma: “você resolveu todos os problemas, ao menos de como fazer um romance”.
A última carta, de 1962, é uma devolutiva da leitura do recém-lançado Franny e Zooey, de J. D. Salinger. Dalton comenta a obra com indiferença e diz ainda preferir O apanhador no campo de centeio. O que salta aos olhos nessa leitura atenta de Salinger é a aproximação que vira e mexe parte da crítica realiza. Ambos os autores foram reclusos por quase toda a vida, é verdade, mas a comparação termina por aí. Salinger parou de publicar nos anos 1960 e viveu até 2010, ou seja, não apenas se tornou recluso, mas encerou a carreira. Dalton, por outro lado, presenteou o público com livros, revisões e trocas de editora até a hora da morte.
O “isolamento” de Dalton não se converteu em baixa produtividade ou falta de sensibilidade ao entorno. Essas cartas mostram uma pessoa companheira e amiga. Leitor implacável, mas fiel ao seu estilo. Necessitado de interlocução e parceria para as empreitadas. À máquina, em cartas para amigos, contradisse os inúmeros pedidos para Otto Lara Resende, quando o instava para ser impiedoso. Dalton, seja gentil. E foi.
Essas cartas, comentadas para saudar e comemorar vida e obra de Dalton Trevisan, são apenas parte do que em breve estará disponível para consulta. O acervo com cartas, livros com marginália, cadernos de anotações e fotografias ajudará a contar a história da literatura brasileira — e da própria amizade.






Danilo Bresciani, sociólogo e mestrando em Literatura na UFRJ, integra a área de Literatura do Instituto Moreira Salles.